* A Distributed Proofreaders Canada eBook *

This eBook is made available at no cost and with very few restrictions. These restrictions apply only if (1) you make a change in the eBook (other than alteration for different display devices), or (2) you are making commercial use of the eBook. If either of these conditions applies, please check with an FP administrator before proceeding.

This work is in the Canadian public domain, but may be under copyright in some countries. If you live outside Canada, check your country's copyright laws. If the book is under copyright in your country, do not download or redistribute this file.

Title: Viagem ao Brasil; versão do texto de Marpurgo, de 1557

Date of first publication: 1930

Author: Hans Staden (1525-1579)

Translator: Albert Löfgren (1854-1918)

Editor: Teodoro Fernandes Sampaio (1855-1937)

Date first posted: January 23 2013

Date last updated: January 23 2013

Faded Page eBook #20130124

This eBook was produced by: Júlio Reis, Ron Tolkien & the online Distributed Proofreaders Canada team at http://www.pgdpcanada.net

(The images for this file were generously made available by Biblioteca Nacional Digital)







[Pg 1]

PUBLICAÇÕES DA ACADEMIA BRAZILEIRA

II—HISTORIA

HANS STADEN

VIAGEM
 AO BRASIL

VERSÃO DO TEXTO DE MARPURGO, DE 1557,

POR

ALBERTO LÖFGREN

Revista e anotada

POR

THEODORO SAMPAIO

————————  1930  ————————
OFFICINA    INDUSTRIAL    GRAPHICA
R U A   D A   M I S E R I C O R D I A,   74
R   I   O       D   E       J   A   N   E   I   R   O

[Pg 3]

 

 

HANS STADEN

VIAGEM AO BRASIL


[Pg 5]

PUBLICAÇÕES DA ACADEMIA BRAZILEIRA

II—HISTORIA


HANS STADEN

Viagem ao Brasil


VERSÃO DO TEXTO DE MARPURGO, DE 1557,

POR

ALBERTO LÖFGREN

Revista e anotada

POR

THEODORO SAMPAIO



 

————————  1930  ————————
OFFICINA    INDUSTRIAL    GRAPHICA
R U A   D A   M I S E R I C O R D I A,   74
R   I   O       D   E       J   A   N   E   I   R   O



Hans Staden

 


[Pg 183]

INDICE

      Pags.
Nota Preliminar, de Afranio Peixoto 7
Prefacio, do Traductor 9
Dedicatoria, do Autor 15
Prefacio, de D Dryander 17
PRIMEIRA PARTE
Capitulo I—   27
"  II— Viagem de Lisboa ao Brasil 29
" III— Assalto dos selvagens de Pernambuco á colonia dos portuguezes 33
"  IV— Fortificações dos selvagens e como elles combatiam 34
"  V— Saída de Pernambuco; encontro com um navio francez; combate 36
"  VI— Secunda viagem, de Sevilha ao Brasil 39
"  VII— Chegada a Paranaguá 41
"  VIII— De Paranaguá á ilha de Santa Catharina 43
"  IX— Chegada á ilha de Santa Catharina 44
"  X— Entre os selvagens da ilha 47
"  XI— Chegada da outra nau, que se havia desgarrado 48
"  XII— Naufragio em Santo Amaro 49
"  XIII— Em S Vicente 52
"  XIV— Como está situado S Vicente 53
"  XV— S Vicente, Bertioga e Santo Amaro 55
"  XVI— Como os Portuguezes reedificaram S Vicente e fortificaram Santo Amaro 56
"  XVII— Em guarda, contra os selvagens 58
"  XVIII— Hans Staden, é aprisionado pelos selvagens 59
"  XIX— Os Portuguezes tentam salvar Hans Staden 62
"  XX— A caminho para a aldeia dos selvagens 63
" XXI— Como trataram a Hans Staden 66
"  XXII— Hans Staden é cedido a um amigo do selvagem que o aprisionou 68
"  XXIII— Danças dos selvagens 70
"  XXIV— Hans Staden é entregue a Ipperu Wasu 72
"  XXV— Por que queriam comer o prisioneiro 73
"  XXVI— Um francez, entre os selvagens, aconselha que devorem Hans Staden 74
"  XXVII— Hans Staden tem dôr de dentos 75
"  XXVIII— Hans Staden é levado a Konyan-Bebe 76
"  XXIX— Os Tuppin Ikins atacam a aldeia onde está Hans Staden 79
"  XXX— Como os chefes se reuniram ao luar 81
"  XXXI— Os Tuppin Ikins incendeiam a aldeia de Mambukabe 82
"  XXXII— Chega um navio de Bertioga 83
"  XXXIII— Os selvagens pedem a Hans Staden que faça com que Deus lhes restitua a saude 84
"  XXXIV— Como Jeppipo Wasu voltou doente 85
"  XXXV— Volta o francez que aconselhara aos selvagens que devorassem Hans Staden 88
"  XXXVI— Como devoraram um prisioneiro 90
"  XXXVII— O que aconteceu depois de terem comido o prisioneiro 91
"  CXXVIII— Mandam os Portuguezes um navio á procura de Hans Staden 93
"  XXXIX— Um prisioneiro, que calumniava Hans Staden, é devorado pelos selvagens 96
"  XL— Chega um navio francez 99
"  XLI— Os selvagens vão para a guerra 102
"  XLII— Como, de volta, trataram os prisioneiros 106
"  XLIII— Como dançavam com os inimigos 109
"  XLIV— Ainda o navio francez 111
"  XLV— Os selvagens devoram o portuguez Jorge Ferreira 111
"  XLVI— Um milagre 112
"  XLVII— Outro milagre 114
"  XLVIII— Os selvagens devoram o portuguez Jeronymo 115
"  XLIX— Hans Staden é entregue a Abbati Bossange 116
"  L— Faz-se de novo a vela o navio francez 116
"  LI— Chega de França o navio "Katharina de Vattauilla", que liberta Hans Staden 117
" LII— Como se chamavam o capitão e o piloto do navio; o que aconteceu antes de partirem; quanto tempo levaram em viagem para França 120
"  LIII— Em Dieppe 123
Oração de Hans Staden emquanto esteve prizioneiro 124

SEGUNDA PARTE

Capitulo I— Como se fazia a navegação de Portugal para o Rio de Janeiro 131
"  II— Como está situado o Brasil 132
"  III— Uma grande serra que ha no pais Costumas dos selvagens 133
"  IV— Descripção das aldeias dos Tuppin Inbás 134
"  V— Como fazem fogo 137
"  VI— Como dormem 137
"  VII— Como são destros no caçar e pescar com flechas 138
"  VIII— Que feição apresenta esta gente 140
"  IX— Como os selvagens cortam sem machados, facas, nem tezouras 140
"  X— Mandioca, frutos, comida 141
"  XI— Como cozinham a comida 143
"  XII— Que regimen e ordem seguem em relação ás autoridades e á justiça 144
"  XIII— Como fabricam os potes e as vaxilhas de que usam 145
"  XIV— Come fabricam as bebidas e como celebram suas bebedeiras 145
"  XV— Qual o enfeite dos homens, como se pintam e quaes são os seus nomes 147
"  XVI— Quaes são os enfeites das mulheres 149
"  XVII— Como dão o primeiro nome ás crianças 150
"  XVIII— Quantas mulheres tem cada um, e como virem com ellas 151
"  XIX— Como contratam os casamentos 151
"  XX— Quaes são as suas riquezas 152
"  XXI— Qual é a sua maior honra 152
"  XXII— Em que crêem 153
"  XXIII— Como elles tratam as mulheres adivinhas 155
"  XXIV— Como navegam nas aguas 156
"  XXV— Porque devoram o inimigo 156
"  XXVI— Como fazem seus planos quando querem guerrear os inimigos 157
" XXVII— Como se armam para a guerra 159
"  XXVIII— Como matam e comem os seus inimigos, e como os tratam 160
"  XXIX— Alguns animaes 171
"  XXX— Serwoy (gambá) 172
"  XXXI— Tigres (onças) 173
"  XXXII— Atton (bieho de pé) 173
"  XXXIII— Morcegos 174
"  XXXIV— Abelhas 174
"  XXXV— Passaros 175
"  XXXVI— Algumas arvores 175
"  XXXVII— Algodão, pimenta e raizes comestiveis 176
Discurso final   176

[Pg 7]

NOTA PRELIMINAR

O livro de Hans Staden é um dos classicos de nossa literatura historica. Cumpria delle ter uma versão fiel e completa, dotada de apparelho critico. Nenhuma das tres edições nossas—Araripe, Löfgren, Lobato—merece taes encomios. Creio que a nossa, a presente, é digna deste elogio. Com effeito, traduzido do texto da edição de Marpurgo por americanista capaz, Alberto Löfgren, trazido á correcção vernacula por Theodoro Sampaio, a competencia deste sabio em assumptos nacionaes enriqueceu o texto com infinidade de notas interessantes e indispensaveis. As gravuras nos vêm da recente edição facsimilar de Frankforte. Temos assim um Hans Staden digno delle e do seu assumpto e que honra, portanto, as publicações da Academia Brasileira.

O retrato com que se abre esta edição foi achado em 1664 e publicado por Winkelmann, sendo reproduzido nessa edição fac-similar de Frankforte. Se não certeza, tem probabilidades de verdadeiro, pois é do tempo a technica da gravura em madeira e foi achado em Cassel entre os desenhos originaes do livro.

Aliás, tambem não ha certeza sobre a vida do autor, desconhecidas as datas de seu nascimento e morte.[Pg 8] Sabe-se apenas que era filho de um burguez de Homberg, e que mais tarde viveu em Wolffhagen, como elle mesmo declara.

O melhor, porém, sua obra, subsiste, e é um documento relevante da historia do Brasil.

A. P.


[Pg 9]

PREFACIO DO TRADUCTOR

A presente traducção do interessante livro de Hans Staden é a segunda em lingua portugueza. A primeira appareceu em 1892, na Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, volume 55, parte 1a, e tem por autor o dr. Alencar Araripe, que adoptou a orthographia phonetica. O original de que esta se serviu foi da edição franceza da collecção Ternaux Compans, que, provavelmente, por sua vez, fôra traduzida da versão latina. Comparando as duas, vê-se que a traducção é fidelissima, mas como não foi o trabalho feito á vista do original allemão, não é de estranhar que se afaste bastante deste, principalmente no estilo que, de todo, foi despresado com sacrificio daquelle cunho característico, com que lembra a sua época.

Mas, além destas, ha varias outras traducções e muitas edições, tanto do original como das versões; segundo o que conhecemos são ellas:

1a. O original primitivo, publicado em 1557 na cidade de Marburg, em Hessen, na Allemanha[1].

[Pg 10]

2a. Segunda edição, impressa no mesmo anno, mas na cidade de Francfort sobre o Meno.

3a. Traducção flamenga, publicada em Antuerpia, em 1558.

4a. Nova edição allemã. publicada em Francfort sobre o Meno, em 1567, na terceira parte de um livro intitulado: Dieses Weltbuch von Newen erfundene Landschaften durch Leb. Francke.

5a. Outra edição, ainda em 1567, na mesma cidade, publicada na collecção das viagens de De Bry.

6a. A traducção em latim, em 1567, da collecção toda de De Bry.

7a. Nova edição latina publicada em 1560[2].

8a. Em 1630 ainda uma terceira.

9a. Uma quarta edição allemã do original, in folio, torna a apparecer em 1593.

10a. Nova traducção flamenga, publicada em 1630, com o titulo de: Hans Staden van Homburgs Beschryringhe van America.

11a. Reimpressa em 1640.

12a. Quinta edição allemã, publicada em Francfort sobre o Meno, em 1631.

13a. Mais uma sexta edição, em quarto, publicada em Oldenburg no anno de 1664.

14a. Em 1686 houve outra edição hollandeza, em quarto, e illustrada com xilopraphias, publicada em Amsterdam.

15a. Mais uma em 1706, numa collecção de viagens, publicada na cidade de Leyden por Pieter Vanden Aa.

16a. Em 1714 seguiu-se a quinta edição hollandeza, publicada em Amsterdam, em parte. Esta edição é mencionada por Bouche de Richarderie na "Bibliothèque Universelle de Voyages". Tomo V, pag. 503. Paris, 1806.

[Pg 11]

17a. Uma traducção franceza foi publicada na collecção de viagens de Ternaux Compans; Vol. III, Paris, 1839, em oitavo.

18a. A sexta edição hollandeza, in folio, foi publicada em Leyden em 1727, como nova edição de Pieter Vanden Aa.

19a. A ultima edição allemã que appareceu em Stuttgart em 1859, na "Bibliothek des Liberischen Vereins", em Stuttgart. Volume XLVII.

20a. Em 1874 a sociedade ingleza The Hakluyt publicou, em volume separado, uma traducção magistral, feita pelo sr. Albert Tootal, com annotações do então consul inglez em Santos, Sir Richard F. Burton. Esta traducção foi feita sobre a segunda edição allemã de 1557 e é até hoje a melhor.

21a. Traducção brasileira na Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, pelo dr. Alencar Araripe.


Tendo o illustrado dr. Eduardo Prado adquirido em Paris um exemplar, original da primeira edição de Marburg, de 1557, começámos a comparar este original com a traducção portugueza e chegámos á conclusão de que talvez houvesse vantagem em dar uma nova edição deste livro tão interessante para a nossa historia. Deliberamos então cingir-nos estrictamente ao methodo e linguagem do autor, conservando integralmente a orthographia dos nomes proprios dos logares, coisas e pessoas e, quanto possivel, o proprio estilo simples e narrativo, com todas as suas imperfeições, e quer-nos parecer que no nosso modesto trabalho não haja a menor omissão.

Por absoluta falta de tempo e, por julgar mais competente, pedimos ao nosso distincto amigo e consocio dr. Theodoro Sampaio que se encarregasse das annotações e esclarecimentos relativos aos nomes e posições relatados pelo autor.

Na traducção inglesa, o sr. Burton fez muitas annotações e deu varias explicações, porém, não sendo todas sempre acertadas, não as copiamos, julgando necessaria uma revisão completa de todas ellas.

As palavras "pela segunda vez diligentemente augmentada e melhorada", que se acham no titulo, podiam fazer suppor que se tratasse aqui de uma segunda edição e não da primeira ou original,[Pg 12] mas estas palavras devem ser entendidas como "por duas vezes augmentada e melhorada" porque, o prefaciador dr. Dryander tinha, certamente, auxiliado ao autor por ser este pouco versado na arte de escrever e compor. Accresce que esta edição é impressa em Marburg na casa de André Colben, o que por si só prova evidentemente ser a primeira edição conhecida, visto a segunda edição ter sido feita em Francfort sobre o Meno, ainda que no mesmo anno. Tendo o dr. Dryander revisto o manuscripto para ser apresentado ao principe em 1556, é muito provavel que, para a impressão, que só teve logar em 1557, o revisse pela segunda vez e nesta occasião talvez augmentasse alguma coisa, como diz o titulo.

As gravuras são reproduções photographicas, em tamanho igual, das estampas do original. Ignora-se, porém, si os desenhos são do proprio autor ou de outrem por elle guiado, o que aliás é mais provavel.

Janeiro de 1900.

Alberto Löfgren, F. L. S.


NOTA—Á nota bibliographica de Löfgren, com as modificações citadas por J. C. Rodrigues, devemos necrescentar:

I—Hans Just Winkelmann: Der Amerikanischen Neuen Welt Beschreibung—Oldenburg, 1644. (Trata se de uma curiosa descripção da America, e nella se inclue o texto da relação de Staden, com as gravuras da 1a edição).

II—Reimpressão, na Zeitschrift des Deutschen Wissenschaftlichen Vereins, de Buenos-Aires, do texto da 3a edição de Frankfort sobre o Meno, de 1567, pelo Dr. R. Lehmann-Nitsche, Buenos Aires, 1921.

III—Hans Staden—edição da serie "Brasil Antigo", da Companhia Editora Nacional, texto ordenado literarinmente por Monteiro Lobato, São Paulo, 1925; 2a ed. 1926; 3a ed. 1927. A edição de M. Lobato contém sómente a 1a parte da obra de H. Staden.

IV— Edição facsimilar da de Marpurg, de 1557, pelo Dr. Richard N. Wegner, Frankfurt a. M., 1927.—A. P.


[Pg 13]

DESCRIPÇÃO VERDADEIRA DE UM PAIZ DE SELVAGENS
NÚS, FEROZES E CANNIBAES, SITUADO NO NOVO
MUNDO AMERICA, DESCONHECIDO NA TERRA
DE HESSEN ANTES E DEPOIS DO NASCIMENTO
DE CHRISTO, ATÉ QUE HA DOIS ANNOS,
HANS STADEN DE HOMBERG,
EM HESSEN, POR SUA PROPRIA
EXPERIENCIA, O CONHECEU
E AGORA A DÁ Á LUZ
PELA SEGUNDA VEZ,
DILIGENTEMENTE
AUGMENTADA E
MELHORADA.

Dedicada a sua serenissima alteza Principe H. Philipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain e Nidda, seu Gracioso Senhor.


Com um prefacio de Dr. Joh. Dryandri, denominada Eychman, Lente Cathedratico de Medicina em Marpurg.

 

O conteúdo deste livrinho segue depois dos prefacios.

 

Impresso em Marpurg no anno de M. D. LVII.


[Pg 15]

Ao serenissimo e nobilissimo Principe e Senhor, Senhor Philipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain e Nidda, etc., meu gracioso Principe e Senhor.

Graça e paz em Christo Jesus nosso redemptor, Gracioso Principe e Senhor. Diz o Santo Rei Propheta, David, no psalmo cento e sete:

"Os que se fazem ao mar em navios, traficando em grandes aguas,

"Esses vêem as obras de Jehovah e suas maravilhas no profundo.

"A um aceno, Elle, faz soprar tormentoso vento, que lhe ergue as ondas.

"Sobem aos céos, descem aos abysmos: suas almas se aniquilam de angustia.

"Tropeçam e titubeam como bebedos: e toda a sua sabedoria se lhes foi.

"Clamam, porém, por Jehovah em suas afflicções; e Elle os tira dos apertos.

"Faz cessar as tormentas, e se aquietam as ondas.

"Então se alegram, porque tranquillizados, e Elle os conduz ao desejado porto.

"Louvem, pois, o Senhor pela sua bondade e pelas suas maravilhas, para com os filhos dos homens.

"E o exaltem no seio do povo, e no conselho dos anciãos o glorifiquem."

Assim, agradeço ao Todo Poderoso, Creador do céo, da terra e do mar, ao seu filho Jesus Christo e ao Espirito Santo, pela grande graça e clemencia de que fui alvo durante a minha estada entre os[Pg 16] selvagens da terra do Prasilien [Brasil], chamados Tuppin Imba[3] e que comem carne de gente, onde estive prisioneiro nove mezes e corri muitos perigos, dos quaes a Santa Trindade inesperada e milagrosamente me salvou, para que eu, depois de longa, triste e perigosa vida, tornasse a vêr a minha muito querida patria, no principado de Vossa Graciosa Alteza, após muitos annos. Modestamente e com brevidade tenho narrado essa minha viagem e navegação para que Vossa Graciosa Alteza a queira ouvir, lida por outrem, de que modo eu, com auxilio de Deus, atravessei terras e mares e como Deus milagrosamente se mostrou para commigo nos perigos. E para que Vossa Graciosa Alteza não duvide de mim, como si eu estivesse a contar coisas mentirosas, queria offerecer a Vossa Graciosa Alteza, em minha propria pessôa, uma garantia para este livro. A Deus sómente seja, em tudo, a Gloria. Recommendo-me humildemente á Vossa Graciosa Alteza.

Datum Wolffhagen a vinte de Junho—Anno Domini.

Mil quinhentos cincoenta e seis.

De V. A. subdito Hans Staden, de Homberg, em
Hessen, agora cidadão em Wolffhagen.     


[Pg 17]

Ao nobilissimo Senhor H. Philipsen, conde de Nassau e Sarprück, etc., meu gracioso Senhor, deseja D. Dryander muita felicidade, com o offerecimento de seus prestimos.

Hans Staden, que acaba de publicar este livro e historia, pediu-me de rever, corrigir e, onde fosse necessario, melhorar o seu trabalho. A este pedido accedi, por muitos motivos. Primeiro, porque conheço o pae do Autor, ha mais de cincoenta annos (pois que nascemos no mesmo estado de Wetter, onde fomos educados), como um homem que, tanto na terra natal, como em Homberg, é tido por franco, devoto e bravo, e que estudou as bôas artes, e (como diz o rifão) porque a maçã não cae longe da arvore, é de esperar que Hans Staden, como filho deste bom homem, deva ter herdado as virtudes e a devoção do pae.

Além disso, acceito o trabalho de rever este livro com tanto mais gosto e amor, quanto me interesso muito pelas noticias concernentes ás mathematicas, como á Cosmographia, isto é, a descripção e medição dos paizes, cidades e caminhos, taes como neste livro se deparam, mórmente quando vejo os successos narrados com franqueza e verdade, e não posso duvidar que este Hans Staden conte e escreva com exactidão e verdade a sua narrativa e viagem, não por tel-as colhido de outrem, mas de experiencia propria, sem falsidade, e que elle dahi não quer tirar gloria nem fama para si, mas sim, unicamente, a gloria de Deus, com louvor e gratidão por beneficios recebidos e pela sua libertação. O seu principal objectivo é tornar conhecida sua historia a todos, para que se possa ver com que favor e como, contra toda a expectativa, Deus, o Senhor, salvou de tantos perigos a Hans Staden, quando elle o implorou, tirando-o do poder dos ferozes selvagens (onde durante nove mezes,[Pg 18] todos os dias e horas, estava esperando ser impiedosamente trucidado e devorado), para lhe permittir, a elle, tornar á sua querida patria, Hessen.

Por essa ineffavel clemencia divina e pelos beneficios recebidos, queria elle agradecer a Deus no limite de suas forças, e em louvor de Deus communicar a todos o que lhe aconteceu. Nesta grata tarefa, a ordem dos acontecimentos o levou a descrever toda a viagem com suas peripecias, durante os dois annos que esteve ausente da patria.

E como faz elle esta descripção sem palavras pomposas e floridas, sem exaggerações, tenho plena confiança na sua authenticidade e verdade, até porque nenhum beneficio póde elle colher em mentir, em vez de contar a verdade.

Além disso, fixou-se elle agora com os seus paes nesta terra e não é dado a vagabundagem, como os mentirosos e ciganos, que se mudam de um pais para outro, pelo que é facil esperar que alguem de volta daquellas ilhas[4] o possa acusar de mentiroso.

Sou de opinião e considero para mim valiosa prova de verdade o fazer elle esta descripção de um modo tão simples e indicar a época, o paiz e o logar, em que Heliodorus, o filho do sabio e muito famoso Eoban de Hessen, o qual aqui foi tido por morto, esteve com Hans Staden naquelle paiz e viu como elle foi miseravelmente preso e levado pelos selvagens. Esse Heliodorus, digo, póde, mais cedo ou mais tarde, voltar (como se espera que aconteça) e então envergonhai-o e denuncial-o, como um homem sem valor, caso sua historia seja falsa, ou inventada.

Para então resalvar e defender a veracidade de Hans Staden, quero agora apontar os motivos pelos quaes esta e similhantes historias logram, em geral, pouco credito e confiança.

Em primeiro logar, viajantes houve que, com mentiras e narrativas de coisas falsas e inventadas fizeram com que homens honestos e veridicos, de volta de terras estranhas, não sejam acreditados e, então se diz geralmente: "quem quer mentir, que minta de[Pg 19] longe e de terras longinquas" porque ninguem vai lá para verificar, e antes de se dar a esse trabalho mais facil é acreditar.

Nada, comtudo, se ganha em desacreditar a verdade por amor de mentiras. É tambem para notar que certas coisas contadas e tidas pelo vulgo como impossiveis, para homens de entendimento não o são; e tomadas por veridicas, quando investigadas, mostram sel-o evidentemente. Isto póde-se observar em um ou dois exemplos, tirados da astronomia. Nós, que vivemos aqui na Allemanha ou perto della, sabemos de longa experiencia a duração do inverno e do verão e das outras duas estações, a primavera e o outono. Tambem conhecemos a duração do maior dia do verão e do menor dia do inverno, bem como a das noites. Si alguem então disser que ha logares na terra onde o sol não se põe durante meio anno, e que ali o dia maior é de 6 mezes, isto é, meio anno, e que ao contrario a noite maior é de 6 mezes ou meio anno, assim como ha logares no mundo onde as quatro estações são duplas, o certo é que dois invernos e dois verões lá existem.

É tambem certo que o sol e outras estrellas, por pequenas que nos pareçam, e mesmo a menor dellas no firmamento, são maiores que toda a terra e são innumeraveis.

Quando então o vulgo ouve estas coisas, desconfia, não acredita e acha tudo impossivel. Entretanto, os astronomos o demonstraram de modo que os entendidos nas sciencias não duvidam disto.

Por isso não se deve concluir que assim não seja, apezar de que o vulgo lhe não dê credito, e como não estaria mal a sciencia astronomica, si não pudesse demonstrar este corpora e determinar, por calculos, os eclipses, isto é, o escurecimento do sol e da lua, com indicar o dia e a hora em que elles se devem dar. Com seculos de antecedencia podem ser preditos e a experiencia demonstra ser verdade. "Sim, dizem elles, quem esteve no céo para ver e medir isso?" Resposta: porque a experiencia diaria nestas coisas combina com as demonstrationibus. É, pois, necessario consideral-as verdadeiras, como é verdadeiro sommar 3 e 2 são 5. E de certas razões e demonstrações da sciencia acontece que se póde medir e calcular a distancia celeste até a lua e dahi para todos os planetas e finalmente até o firmamento estrellado. Até o tamanho e[Pg 20] densidade do sol, da lua e outros corpos celestes e da sciencia do céo ou astronomia, de combinação com a geometria, calculam-se a grandeza, a redondeza, a largura e o comprimento da terra, coisas estas todas desconhecidas do vulgo e por elle não acreditadas. Esta ignorancia por parte do vulgo ainda é perdoavel por não estudar elle a philosophia; mas que pessôas importantes e quasi sabias duvidem destas coisas tão verdadeiras, é vergonhoso e até perigoso, porque o vulgo tem confiança nellas e persiste no seu erro dizendo: si assim fosse, este ou aquelle escriptor não teria refutado. Ergo, etc.

Que S. Agostinho e Lactancio Firmiano, dois santos sabios, não sómente em theologia, como tambem em outras boas artes versados, duvidaram e não quizeram admittir que pudesse haver antípodas, isto é, que houvesse habitantes no outro lado da terra, que andem com seus pés voltados contra nós e, portanto, a cabeça e o corpo pendentes para o céo, isto sem cair, parece singular, apezar de que muitos outros sabios o admittam contra a opinião dos santos e grandes sabios, acima mencionados, que o negaram e o tiveram por inventado. Deve, porém, ser verdade que aquelles que habitam ex diametro per centrum terrae são antípodas e vera propositio é que "Omne versus coelum vergens, ubicumque locorum, sursum est." E não é necessario ir até o novo Mundo a procurar os antípodas, pois elles existem tambem aqui no hemispherio superior da terra. Pois si compararmos e confrontarmos o ultimo paiz do Occidente, como é a Espanha no Finisterra, com o Oriente, onde está a India, estas gentes extremas e habitantes terrestres são tambem quasi uma especie de antípodas.

Pretendem alguns santos theologos com isso provar que se tornou verdade a supplica da mãe dos filhos de Zebedeu, quando rogou a Christo, Senhor Nosso, que seus filhos ficassem, um ao lado direito e outro ao esquerdo delle. E isso de facto aconteceu, pois que S. Tiago sepultou-se em Compostella, não longe de Finisterra, geralmente denominado Finstern Stern[5] [Estrella escura], onde é venerado, e o outro apostolo na India, ou onde o sol levanta. Que,[Pg 21] pois, os antípodas existiam ha muito sem serem notados, e que ao tempo de S. Agostinho, quando o novo mando da America, na parte inferior do globo, ainda se não descobrira, não deixaram de existir, é um facto. Alguns theologos, especialmente Nicolau Lyra (reputado, todavia, excellente homem), affirmam ser a parte firme do globo terraqueo numa metade apenas fóra d'agua, na qual fluctúa e onde habitamos, a outra parte occulta-se pelo mar e pela agua, de modo que nella ninguem pode existir. Tudo isso, porém, é contrario á sciencia da Cosmographia, pois que hoje está verificado pelas muitas viagens maritimas dos portuguezes e dos espanhóes que a terra é habitada por toda a parte. A propria zona torrida tambem o é, o que nossos antepassados e escriptores jamais admittiram. A nossa experiencia de cada dia mostra-nos que o assucar, as perolas e productos outros para cá vem daquelles paizes. O paradoxo dos antípodas e a já referida medição do céo, mencionei-os aqui tão sómente a reforçarem o meu argumento, e podia ainda me referir a muitas outras coisas mais, si não temesse aborrecer-Vos com o meu longo prefacio.

Muitos outros argumentos similhantes, porém, podem-se ler no livro do digno e sabio Magister Casparus Goldtworm, diligente superintendente e prégador de V. Alteza, em Weilburgk, livro em seis partes, tratando de muitos milagres, maravilhas e paradoxos dos tempos antigos e modernos, e que sem demora se deve dar a imprimir. Para este livro e muitos outros que descrevem taes coisas, como, p. ex., o seu Libri Galeotti, De rebus vulgo incredibilibus, etc., chamo a attenção do benevolo leitor desejoso de conhecer mais estas coisas.

Com tudo isso se prova que não é necessariamente uma mentira, o affirmar-se coisa estranha e descommunal para o vulgo como nesta historia se verá, na qual toda a gente da ilha[6] anda núa e não tem por alimento animaes domesticos, nem possue coisas para sua subsistencia das que nós usamos, como vestimentas, camas, cavallos,[Pg 22] porcos ou vaccas; nem vinho, cerveja, etc., e tem que se arranjar e viver a seu modo.

Quero, porém, para finalizar com este prefacio, mostrar em poucas palavras o que induziu a Hans Staden a imprimir as suas duas navegações e a viagem por terra. Certo, muitos hão de interpretar isso em seu desabono, como si quizesse elle ganhar gloria ou notoriedade. Eu, porém, penso de outra forma e acredito seriamente que sua intenção é muito diversa, como se percebe em varios logares desta historia. Passou elle por tanta miseria e soffreu tantos revézes, nos quaes a vida tão a miudo lhe esteve ameaçada, que chegou a perder a esperança de se livrar ou de jámais voltar ao lar paterno. Deus, porém, em quem sempre confiava e invocava, não sómente o livrou das mãos de seus inimigos, como tambem, por amor das suas fervorosas orações, quiz mostrar á aquella gente impia que o verdadeiro e legitimo Deus, justo e poderoso, ainda existia. Sabe-se perfeitamente que a oração do crente não deve marcar a Deus limite, medida ou tempo; aprouve, porém, a Elle, por intermedio de Hans Staden, o demonstrar os seus milagres a estes impios selvagens. E isto não sei como contestar.

Sabe-se tambem como as contrariedades, as tristezas, desgraças e doenças fazem geralmente com que as pessoas se dirijam a Deus e que, na adversidade, nelle acreditam mais do que antes, ou como alguns, segundo o costume catholico, fazem votos a este ou áquelle Santo de fazer romaria ou penitencia, para que elle os livre nos apuros, cumprindo rigorosamente essas promessas, a não serem aquelles que pretendem defraudar o Santo, como nos refere Erasmus Roterodamus, nos Colloquiis sobre o naufragio de um navio de nome S. Christovam, cuja imagem de dez covados de alto, como um grande Poliphemo, se acha num templo em Paris, navio em que vinha alguem que fizera a promessa a este Santo de offerecer-lhe uma vela de cera do tamanho do proprio Santo, si este o tirasse das suas aperturas. Um companheiro, que estava ao lado nesta occasião, conhecendo-lhe a pobreza, o reprehendeu por tal promessa; pois ainda que vendesse tudo quanto possuia no mundo, não seria capaz de adquirir a cera de que havia de precisar para tamanha vela. O outro, porém, respondeu em voz baixa, que o Santo não[Pg 23] ouvisse: "Quando o Santo me tiver salvo destes perigos, dar-lhe-ei uma vela de sebo, do valor de um vintem!"

E a historia do cavalleiro, que estava arriscado a naufragio, é tambem outra: Esse cavalleiro, quando viu que o navio ia se perder, fez voto a S. Nicolau de que, si elle o salvasse, lhe sacrificaria o seu cavallo ou o seu pagem. O criado, porém, advertiu de que não o fizesse, porque, em que havia de montar depois? O cavalleiro respondeu ao criado, baixinho, para que o Santo não o ouvisse: "Cala a boca, porque si o Santo me salvar, não lhe darei nem a cauda do cavallo". E assim pensava cada um dos dois enganar o Santo e esquecer o beneficio.

Para que, pois, Hans Staden não seja taxado assim de esquecer a Deus que o salvou, assentou elle de o louvar e glorificar com o imprimir esta narrativa e, com espirito christão, divulgar a graça e obra recebidas, sempre que tiver occasião. E si esta não fosse a sua intenção (aliás honesta e justa) podia elle poupar-se a esse trabalho e economizar a despesa, não pequena que a impressão e as gravuras lhe custaram.

Como esta historia foi pelo autor humildemente dedicada ao Serenissimo e de elevadissimo nascimento. Principe e Senhor, Philipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain e Nidda, seu Principe e gracioso Senhor, e em nome de sua Alteza o fez publico, e tendo elle sido, muito antes disto, examinado e interrogado por Vossa Alteza em minha presença e na de muitas outras pessôas sobre a sua viagem e prisão, que eu já por diversas vezes tinha contado á Vossa Alteza e a outros senhores, e como eu, ha muito, tinha visto e observado o grande amor que Vossa Alteza manifestou por estas e outras sciencias astronomicas e cosmographicas, desejava humildemente escrever este prefacio ou introducção para Vossa Alteza, e lhe pedir de acceitar este mimo, até que possa eu publicar coisa de maior importancia em nome de Vossa Alteza.

Recommendo-me submissamente á Vossa Alteza.

 

Datum Marpurgk, Dia de S. Thomé, anno MDLVI.


[Pg 24]

Primeira Parte


[Pg 25]

CONTEÚDO DO LIVRO

1—Duas viagens de mar, effectuadas por Hans Staden, em oito annos e meio.

A primeira viagem foi de Portugal, e a segunda da Espanha ao Novo Mundo—America.

2—Como elle, no paiz dos selvagens denominados Toppinikin (subditos d'el-rei de Portugal), foi empregado como artilheiro contra os inimigos.

Finalmente, feito prisioneiro pelos inimigos e levado por elles, permaneceu dez meses e meio em constante perigo de ser morto e devorado por elles.

3—Como Deus livrou misericordiosa e maravilhosamente a este prisioneiro, no anno já mencionado, e como elle tornou á sua querida patria.

Tudo para honra e gloria da misericordia de Deus, dado á impressão.

[Pg 26]


[Pg 27]

CAPITULO I

De que vale á cidade o guarda,
E ao navio possante nos mares,
Si Deus a elles não proteger?

Eu, Hans Staden, de Homberg, em Hessen, resolvi, caso Deus quizesse, visitar a India. Com esta intenção, saí de Bremen para Hollanda e achei em Campen [Campon] navios que tencionavam tomar carga de sal, em Portugal. Embarquei-me em um delles e, no dia 29 de abril de 1547, chegámos á cidade de São Tuval [Setubal] depois de uma travessia de quatro semanas. Dahi fui á Lissebona [Lisbôa], que dista cinco milhas de São Tuval.

Em Lissebona alojei-me em uma hospedaria, cujo dono era allemão e se chamava Leuhr, o Moço, onde fiquei algum tempo.

Contei-lhe que tinha saído da minha patria e lhe perguntei quando esperava que houvesse expedição para a India. Disse-me que eu tinha demorado demais e que os navios d'El-rei, que navegavam para a India, já tinham sahido. Pedi-lhe então que me auxiliasse no intento de encontrar outro navio, visto que perdèra estes, tanto mais que elle sabia a lingua, e que eu estava prompto a servil-o por minha vez.

Levou-me para um navio, como artilheiro. O capitão desta nau chamava-se Pintiado [Penteado] e se destinava ao Prasil, para traficar e tinha ordens de atacar os navios que commerciavam com os mouros brancos da Barbaria. Tambem si achasse navios franceses em trafico com os selvagens do Prasil, devia aprisional-os,[Pg 28] bem como transportar alguns criminosos[7] sujeitos a degredo, para povoarem as novas terras.

O nosso navio estava bem apparelhado de tudo que é necessario para guerra no mar. Eramos tres allemães, um chamado Hans von Bruchhausen, o outro Heinrich Brant, de Bremen, e eu.


[Pg 29]

CAPITULO II

Descripção da minha primeira viagem de Lissebona
para fóra de Portugal

Saímos de Lissebona com mais um navio pequeno, que tambem pertencia ao nosso capitão, e aportamos primeiro a uma ilha, denominada Ilha de Madera, que pertence a El-rei de Portugal, e onde moram portuguezes. É grande productora de vinho e de assucar. Ali mesmo, numa cidade chamada Funtschal [Funchal], embarcámos mantimentos.

Depois disso, deixamos a ilha em demanda da Barbaria, para uma cidade chamada Cape de Gel[8], que pertence a um rei mouro, branco, a quem chamam Shiriffi [Sherife]. Esta cidade pertencia, outr'ora, a El-Rei de Portugal; mas foi retomada pelo Shiriffi. Nella pensavamos encontrar os mencionados navios que negociam com os infiéis. Chegámos e achámos, perto de terra, muitos pescadores castelhanos, que nos informaram de que alguns navios estavam para chegar, e ao afastarmo-nos, saiu do porto um navio bem carregado. Perseguimol-o, alcançando-o; porém a tripolação escapou nos botes. Divisamos então em terra um bote vasio que bem podia nos servir para abordar o navio aprisionado, e fomos buscal-o.

Os mouros brancos chegaram então a cavallo, a protegerem o barco; mas não podiam aproximar-se por causa dos nossos canhões. Tomámos conta do navio e partimos com a nossa preza, que consistia em assucar, amendoas, tamaras, couros de cabra e gomma arabica, que levámos até a Ilha de Madera, e mandámos o nosso navio menor a Lissebona, a informar a El-Rei e receber instrucções a respeito da preza, pois que havia negociantes valencianos e castelhanos entre os proprietarios.

[Pg 30]

El-Rei nos respondeu que deixassemos a preza na Ilha e continuassemos a viagem, emquanto Sua Majestade deliberava sobre o caso.

Assim o fizemos, e navegámos de novo, até o Cape de Gel, a ver si encontravamos mais prezas. Porém foi em vão; fomos impedidos pelo vento, que, proximo da costa, nos era sempre contrario. A noite, vespera de Todos os Santos, uma tempestade nos levou da Barbaria para o lado do Prasil. Quando estavamos a 400 milhas da Barbaria grande, um cardume de peixes cercou o navio; apanhámos muitos com o anzol. Alguns, grandes, eram dos que os marinheiros chamavam Albakores. Outros, Bonitas, eram menores, e[Pg 31] ainda a outros chamavam Durados[9]. Tambem havia muitos do tamanho do harenque, que tinham azas nos dois lados, como os morcegos, e eram muito perseguidos pelos grandes. Quando percebiam isso, saíam da agua em grandes cardumes e voavam, cerca de duas braças acima da agua; muitos caíam perto e outros longe a perder de vista; depois, caíam outra vez na agua. Nós os achávamos frequentemente, de manhã cedo, dentro do barco, caídos durante a noite, quando voavam. E são denominados na lingua portugueza—pisce bolador[10].

[Pg 32]

Dahi chegámos até á linha equinoxial onde reinava intenso calor, porque, ao meio dia, o sol estava exactamente a pino sobre as nossas cabeças. Durante algum tempo, de dia, não soprava vento algum; mas de noite, se desencadeavam, muitas vezes, fortes trovoadas, acompanhados de chuva e vento, que passavam rapido. Entretanto tinhamos de velar constantemente, para que nos não surprehendessem, quando navegavamos a panno.

Mas, quando de novo soprou o vento, que se tornou temporal, durante alguns dias, e contrario a nós, julgámos-nos ameaçados de fome, si continuasse. Orámos a Deus, pedindo bom vento. Aconteceu então, uma noite, por occasião de forte tempestade, que nos pôz em grande perigo, apparecerem muitas luzes azues no navio, como nunca mais tenho visto. Onde as vagas batiam no costado, lá estavam tambem as luzes. Os portuguezes diziam que essas luzes eram um signal de bom tempo que Deus nos mandava, para nos consolar no perigo. Agradeciamos então a Deus, depois que desappareciam. Chamam-se Santelmo, ou Corpus Santon, estas luzes.

Quando o dia raiou, o tempo se tornou bom, soprando vento favoravel, de modo que vimos claramente que taes luzes são milagres de Deus.

Continuámos a viagem através do oceano, com bom vento. A 28 de janeiro [1548] houvemos vista de terra, vizinha de um cabo chamado Sanct Augustin. A oito milhas dahi, chegámos a um porto, denominado Pronnenbucke[11]. Contavam-se oitenta e quatro dias que tinhamos estado no mar sem ter avistado a terra. Ali os portuguezes tinham estabelecido uma colonia, chamada Marin[12]. O governador desta colonia chamava-se Arto Koslio[13], a quem entregámos os criminosos; e ali descarregámos algumas mercadorias, que lá ficaram. Terminámos os nossos negocios neste porto, com intuito de proseguir viagem, a tomar cargas.


[Pg 33]

CAPITULO III

Como os selvagens do logar Prannenbucke se revoltaram
e quizeram destruir a colonia dos portuguezes

Aconteceu que os selvagens do logar se tinham revoltado contra os portuguezes, o que dantes nunca fizeram; mas agora o faziam por se sentirem escravizados. Por isso, o governador nos pediu, pelo amor de Deus, que occupassemos o logar denominado Garasú[14], a cinco milhas de distancia do porto de Marin, onde estavamos ancorados, e de que os selvagens se queriam apoderar. Os habitantes da colonia de Marin não podiam ir em auxilio delles, porque receiavam que os selvagens os viessem atacar.

Fomos, pois, em auxilio da gente de Garasú, com quarenta homens do nosso navio e para lá nos dirigimos numa embarcação pequena. A colonia fica num braço do mar, que avança duas leguas pela terra a dentro. Haveria ali uns noventa christãos para a defesa. Com elles se achavam mais uns trinta mouros e escravos brazileiros[15] pertencentes aos moradores. Os selvagens, que nos sitiavam[16], orçavam por oito mil.

Tinhamos ao redor da praça apenas uma estacada de madeira[17].


[Pg 34]

CAPITULO IV

De como eram suas fortificações e como elles combatiam
contra nós

Ao redor do logar onde estavamos sitiados havia uma matta, na qual tinham construido dois reductos de troncos grossos, onde se recolhiam á noite; e quando nós os atacavamos, para lá se refugiavam. Ao pé destes reductos abriam buracos no chão, onde se mettiam durante o dia e donde saíam para nos guerrilhar. Quando atiravamos sobre elles, caíam todos por terra pensando assim evitar o tiro. Tinham-nos sitiado tão bem, que não podiamos sair nem entrar. Aproximavam-se do povoado; atiravam flechas para o ar, visando na quéda nos alcançar; atiravam tambem flechas com algodão seguro com cêra a que deitavam fogo com o fim de incendiar os tectos das casas e combinavam já de antemão o modo de nos devorar quando nos houvessem colhido.

Restava-nos ainda algum mantimento, mas este logo se acabou. Neste paiz é uso trazer diariamente, ou de dois em dois dias, raizes frescas de mandioca para fazer farinha ou bolos; mas os nossos não podiam se aproximar do logar em que se encontravam essas raizes.

Como percebessemos que nos havia de faltar mantimento, saímos em dois barcos por um logar chamado Tamaraká[18] a buscal-o. Os selvagens, porém, tinham atravessado grandes troncos de arvores no rio e se postaram muitos delles nas duas margens, com o intuito de impedir a nossa viagem. Forçámos, porém, a tranqueira e ao meio dia, mais ou menos, estavamos de volta sãos e salvos. Os selvagens nada nos puderam fazer nas embarcações; arrumaram, porém, porção de lenha entre a margem e os barcos, a que deitaram fogo, a vêr si os incendiavam, e queimavam uma especie[Pg 35] de pimenta, que lá cresce, com o fim de nos fazerem abandonar as embarcações por causa da fumaça. Mas não fôram bem succedidos e, emquanto isto, cresceu a maré e nós voltámos. Fomos a Tamaraká, onde os habitantes nos forneceram os mantimentos.

Com estes voltámos, outra vez, para o logar sitiado. No mesmo ponto em que d'antes haviam posto obstaculos tinham os selvagens de novo derribado arvores, como anteriormente; mas acima do nivel d'agua e, na margem, tinham cortado duas arvores de modo a ficarem ainda em pé. Nas ramagens amarraram-lhes uns liames chamados sippo[19] que crescem como lupulo, porém mais[Pg 36] grossos. As extremidades ficavam amarradas nas estacadas e, puxando por ellas, era seu intento fazer tombar as arvores caindo sobre as nossas embarcações. Avançámos para lá; forçámos a passagem, caindo a primeira das arvores para o lado da estacada e a outra na agua, um pouco para tráz do nosso barco. E antes que começassemos a forçar as tranqueiras, chamámos por nossos companheiros da povoação para virem em nosso auxilio. Quando começámos a chamar, em voz alta, gritaram os selvagens tambem, para que os nossos companheiros nos não ouvissem, visto que não nos podiam ver por causa de uma pequena matta interposta; mas tão perto estavamos que nos teriam decerto ouvido, si os selvagens não gritassem.

Levámos as provisões á povoação, e como os selvagens viram que nada podiam fazer, pediram a paz e se retiraram. O cerco durava havia quasi um mez e varios dos selvagens morreram; nenhum, porém, dos christãos. Uma vez pacificados os selvagens voltámos ao navio grande em Mearim, e ahi tomámos agua e tambem farinha de mandioca para servir de mantimento, e o governador da colonia de Mearim nos agradeceu.


CAPITULO V

De como saímos de Prannenbucke para uma terra chamada
Buttugaris; encontramos um navio francez
e nos batemos com elle

Viajámos quarenta milhas para diante, até um porto chamado Buttugaris[20], onde pretendiamos carregar o navio com páu-prasil e receber provisões em permuta com os selvagens.

Ao chegarmos, ahi encontrámos um navio de França, que carregava[Pg 37] páu-prasil. Atacamol-o para o aprisionar, mas cortaramnos o mastro grande com um tiro, e se escaparam; alguns dos nossos morreram e outros ficaram feridos.

Depois disto, queriamos tornar para Portugal, visto que não conseguiamos vento favoravel para entrar no porto, onde pensavamos obter mantimentos. O vento era-nos contrario, e assim fomonos[Pg 38] embóra, com tão poucas provisões que tivemos de padecer muita fome; alguns comiam couro de cabritos, que tinhamos a bordo. Distribuiam-se a cada um de nós, por dia, um copinho de agua e um pouco de farinha de raiz brasileira [mandioca]. Estivemos assim 108 dias no mar, e no dia 12 de agosto alcançamos umas ilhas chamadas Losa Sores [Los Açores] que pertencem a El-Rei de Portugal; ahi lançámos ancora, descançámos e pescámos. Ali mesmo vimos um navio ao mar, ao qual nos dirigimos para ver que navio era. Manifestou ser navio de piratas, que se puzeram em defesa; mas nós ficámos victoriosos e lhes tomámos o navio. Escaparam nos escaleres para as ilhas. O navio tinha muito vinho e pão, com que nos regalámos. Depois encontrámos umas cinco velas que pertenciam a El-Rei de Portugal e tinham de aguardar nas ilhas a vinda de outro navio das Indias para comboial-o até Portugal. Ahi ficámos e ajudámos a levar o navio das Indias, que veiu para uma ilha chamada Tercera [Terceira], onde ficámos. Nesta ilha, tinham-se reunido muitos navios, todos vindos do novo mundo; uns iam para a Espanha, outros para Portugal. Saímos da ilha Tercera em companhia de quasi cem navios, e chegámos á Lissebona [Lisboa], a 8 de outubro, mais ou menos, do anno 1548; tinhamos gasto dezeseis mezes em viagem.

Depois, descancei algum tempo em Lissebona e fiquei com vontade de ir com os espanhóes para as novas terras que elles possuem. Saí por isso de Lissebona, em navio inglez, para uma cidade chamada porto Santa Maria[21], na Castilia [Castella]. Ali queriam carregar o navio de vinho; dahi fui para uma cidade denominada Civilia[22], onde encontrei tres navios que se estavam apparelhando para irem a um paiz chamado Rio de Platta, situado na America. Esse paiz, a aurifera terra chamada de Pirau[23] que, ha poucos annos, foi descoberta, e o Prasil são tudo uma e mesma terra firme.

Para conquistar aquelle territorio, mandaram, ha annos, navios[Pg 39] dos quaes um voltava pedindo mais auxilio e contou como era rico em ouro. O commandante dos tres navios chamava-se Don Diego de Senabria e devia ser o governador, por parte d'El-Rei, daquelle paiz. Fui a bordo de um desses navios que estavam muito bem equipadas. Saímos de Civilia para Sanct Lucas[24], por onde a gente de Civilia sae para o mar, e ahi ficámos esperando bom vento.


CAPITULO VI

Narração da minha segunda viagem de Civilia,
em Espanha, para a America

No anno de 1549, no quarto dia depois da Paschoa, fizemo-nos de vela de S. Lucas com vento contrario, pelo que aportámos a Lissebona. Quando o vento melhorou fomos até ás ilhas Cannarias e deitámos ancora numa ilha chamada Pallama [Palma], onde embarcámos algum vinho para a viagem. Os pilotos dos navios resolveram, caso desgarrassem no mar, encontrarem-se em qualquer terra que fosse, no gráo 28 ao sul da linha equinocial.

De Pallama, fomos até Cape-Virde [Cabo Verde], isto é, a ponta verde, situada na terra dos mouros pretos. Ahi quasi naufragámos; mas continuámos a nossa derrota; o vento porém era-nos contrario e levou-nos algumas vezes até a terra de Gene [Guiné], onde tambem habitam mouros pretos. Depois, chegámos a uma ilha denominada S. Thomé, que pertence a El-Rei de Portugal. É uma ilha rica em assucar, mas muito insalubre. Ahi habitam os portuguezes com muitos mouros pretos, que lhes pertencem. Tomámos agua fresca na ilha e continuámos a viagem; perdemos ahi de vista dois dos nossos navios que, por causa de uma tempestade, se afastaram, de modo que ficámos sós. Os ventos eram-nos contrarios, porque naquelles mares tem elles a particularidade de soprarem do[Pg 40] sul, quando o sol está ao norte da linha equinocial, e quando o sol está ao sul desta linha vêm elles do norte, e costumam então permanecer na mesma direcção durante cinco mezes, e por isso não pudémos seguir o nosso rumo durante quatro mezes. Quando, porém, entrou o mez de setembro, começou o vento a ser do norte, e então continuámos a nossa viagem de sul-sudoeste para a America.


[Pg 41]

CAPITULO VII

De como chegámos á latitude de 28 gráos na terra da America
e não pudemos reconhecer o porto para onde
iamos, e uma grande tempestade se
desencadeou em terra

Um dia, que era o 18 de novembro, o piloto tomou a altura do sol, que era de 28 gráos, pelo que procurámos terra a Oéste. No dia 24 do mesmo mez vimos terra. Tinhamos estado 6 mezes no mar; algumas vezes em grande perigo. Aproximando-nos de terra, não reconhecemos o porto nem os signaes que o primeiro official nos tinha descripto. Tambem não podiamos nos arriscar a entrar num porto desconhecido, pelo que cruzámos em frente á terra. Começou a ventar muito, de tal modo que temiamos ser atirados contra os rochedos, pelo que amarrámos alguns barris vasios, nos quaes puzemos polvora, bem jungidos, e nelles amarrámos as nossas armas, de forma que, si naufragassemos e alguns escapassem, teriam com que se defender em terra, porque as ondas levariam os barris para a praia. Continuámos então a cruzar, mas debalde, porque o vento atirou-nos contra os rochedos e parcéis com 4 braças de agua, e á vista dos immensos vagalhões houvemos de aprôar para terra, na persuasão de que todos iamos perecer. Quiz Deus, porém, que ao chegarmos mais perto dos escolhos se nos deparasse porto, no qual entrámos. Ahi avistámos pequeno barco que fugiu de nós e se escondeu por detráz de uma ilha, onde não o podiamos ver, nem saber que barco era; porém não o seguimos. Deitámos aqui ancora, agradecendo a Deus que nos salvou; descançámos e enxugámos a nossa roupa.

Eram mais ou menos duas horas da tarde, quando deitámos ancora. De tarde, veiu uma grande embarcação com selvagens, que queriam falar comnosco. Nenhum de nós, porém, entendia a lingua delles. Démos-lhes algumas facas e anzóes, com que voltaram. Na mesma noite, veiu mais uma embarcação cheia, na qual estavam dois portuguezes. Estes nos perguntaram de onde vinhamos. Respondemos que vinhamos de Espanha. A isto replicaram que[Pg 42] viamos ter um bom piloto, que pudesse nos levar ao porto, porque, apezar de elles bem o conhecerem, com uma tempestade destas não poderiam ter entrado. Contámos-lhes então tudo e como o vento e as ondas quasi nos fizeram naufragar; e quando nos julgavamos perdidos, ganhamos inesperadamente o porto. Foi, pois, Deus que nos guiou milagrosamente e nos salvou do naufragio; e nem sabiamos onde estavamos.

Ao ouvirem isso, admiraram-se muito e agradeceram a Deus e nos disseram que o porto onde estavamos era Supraway[25], e que[Pg 43] deestavamos a 18 leguas de uma ilha, chamada S. Vincente[26], que pertencia a El-Rei de Portugal, e lá moravam elles e aquelles outros que tinhamos visto no barco pequeno a fugirem por pensarem que eramos francezes.

Perguntámos tambem a que distancia ficava a ilha de Santa Catharina, para onde queriamos ir. Responderam que podia ser umas trinta milhas para o sul e que lá havia uma tribu de selvagens chamados Carios [Carijós] e que tivessemos cautela com elles. Os selvagens do porto onde estavamos, chamavam-se Tuppin Ikins [Tupiniquins] e eram seus amigos, de modo que não corriamos perigo.

Perguntámos mais em que latitude estava o lugar, e responderam-nos que estava a 28 gráos, o que era verdade. Tambem nos ensinaram como haviamos de conhecer o paiz.


CAPITULO VIII

De como saímos outra vez do porto a procurar o logar
para onde queriamos ir

Quando o vento de es-suéste cessou, melhorou o tempo com o vento de nordéste. Levantámos então ferro e rumámos para a terra já mencionada. Viajámos dois dias, á procura do porto, mas não pudémos reconhecel-o. Percebemos, porém, pela terra que já tinhamos passado o porto, uma vez que, encoberto o sol, não podiamos fazer observações, nem voltar com vento contrario.

Mas Deus é salvador nas necessidades. Ao fazermos a nossa oração vespertina, implorando a protecção de Deus, aconteceu que nuvens grossas se formassem ao sul para onde tinhamos avançado. Antes de terminada a reza, o Nordéste acalmou, de modo a não ser[Pg 44] mais perceptivel, e o vento sul, apezar de não ter a época do anno em que elle reina, começou a soprar, acompanhado de tantos trovões e relampagos, que ficámos amedrontados. O mar tornou-se tempestuoso, porque o vento sul, de encontro ao do norte, levantava as ondas, e tão escuro estava que se não podia enxergar. Os grandes relampagos e os trovões atemorizavam a tripolação, de modo que já ninguem sabia o que fazer, para colher as velas. Esperavamos todos perecer aquella noite. Deus, porém, fez com que o tempo mudasse e melhorasse; e voltámos para o logar de onde tinhamos partido naquelle dia, procurando de novo o porto, mas sem o conseguirmos, por causa das muitas ilhas proximas da terra firme.

Como chegassemos ao gráo 28, disse o capitão ao piloto que entrasse por detráz de uma ilha e deitasse ancora, afim de ver em que terra estavamos. Entrámos, então, entre duas terras, onde havia um porto excellente, deixámos a ancora ir ao fundo e deliberámos tomar o bote para melhor explorar o porto.


CAPITULO IX

De como alguns doa nossos saíram no bote para reconhecer
o porto e acharam um crucifixo sobre uma rocha

Foi no dia de Santa Catharina, no anno de 1549, que deitámos ancora, e, no mesmo dia, alguns dos nossos, bem municiados, saíram no bote para explorar a bahia. Começámos a pensar que fosse um rio, que se chama Rio de S. Francisco, situado tambem na mesma provincia, pois que, quanto mais entravamos, mais cumprido parecia.

Olhavamos de vez em quando, a ver se descobriamos alguma fumaça, porém nada vimos. Finalmente, pareceu-nos ver umas cabanas e para lá nos dirigimos. Eram já velhas, sem pessoa alguma dentro, pelo que continuámos até de tarde. Então vimos uma ilha pequena na frente, para a qual nos dirigimos, a passar a noite,[Pg 45] julgando haver ali um abrigo. Chegámos á ilha, já noite; não podiamos, porém, arriscar-nos a irmos á terra, pelo que alguns dos nossos foram rodeal-a a ver si por ali havia gente; mas não descobriram ninguem. Fizemos então fogo e cortámos uma palmeira, para comer o palmito, e ficámos ali durante a noite. De manhã cedo, avançámos pela terra a dentro. Nossa opinião era que havia ali gente, porque as cabanas eram disto um indicio. Adiantando-nos, vimos ao longe, sobre uma rocha, um madeiro, que nos pareceu uma cruz e não comprehendiamos quem a teria posto ali. Chegámos a ella e achámos uma grande cruz de madeira, apoiada com pedras e com um pedaço de fundo de barril amarrado e, neste fundo, gravadas umas letras que não podíamos lêr, nem adivinhar qual o navio que teria erigido esta cruz; e não sabiamos si este era o porto onde deviamos nos reunir. Continuámos então rio acima e levámos o fundo do barril. Durante a viagem, um dos nossos examinou de novo a inscripção e começou a comprehendel-a. Estava ali gravado em lingua espanhola: Si vehn por ventura, ecky la armada de Su Majestet, tiren uhn tire ay aueran recado (se viene por ventura aqui la armada de su magestad, tiren un tiro y haran recado). Isto quer dizer: Si por acaso aqui vierem navios de sua majestade, dêm um tiro e terão resposta.

Voltámos então sem demora para a cruz e disparámos um tiro de peça, continuando depois, rio acima, a nossa viagem.

Pouco depois, vimos cinco canôas com selvagens, que vieram sobre nós, pelo que apromptámos as nossas armas. Chegando mais perto, vimos um homem vestido e barbado que vinha á prôa de uma das canôas e nos parecia christão. Gritámos-lhe para fazer alto ás outras canôas e vir com uma só a conversar comnosco. Quando se nos aproximou, perguntámos-lhe em que terra estavamos; ao que nos respondeu que estavamos no porto de Schirmirein[27], assim[Pg 46] denominado pelos selvagens, e para melhor o entendermos, accrescentou chamar-se Santa Catharina, nome dado pelos descobridores.

Alegrou-nos muito isto, porque este era o porto que procuravamos, sem conhecer que já nelle estavamos, coincidindo ser isso no mesmo dia de Santa Catharina. Vêde, pois, como Deus soccorre aquelle que no perigo o implora com fervor.

Então nos perguntou elle de onde vínhamos, ao que respondemos que pertenciamos á armada do Rei da Espanha, em caminho para o Rio de la Platta, e que havia mais navios em viagem, que esperavamos, com Deus, chegassem logo para nos unirmos a elles.[Pg 47] A isto respondeu elle que estimava muito e agradecia a Deus, porque havia tres annos que tinha sahido da provincia do Rio de la Platta, da cidade chamada la Soncion[28], pertencente aos espanhóes, por ter sido mandado á costa, cidade distante 300 milhas do logar onde estavamos, para fazer com os Cariós, que eram amigos dos espanhóes, plantassem raizes que se chamam mandioca e supprissem as naus que disso precisassem. Eram essas as ordens do capitão que levara as ultimas novas á Espanha e se chamava Salaser[29] e que agora voltava com outras naus.

Acompanhados então dos selvagens até ás cabanas onde elle morava, ali fomos bem tratados.


CAPITULO X

Como me mandaram á nossa nau grande numa canôa
cheia de selvagens

Pediu então o nosso capitão ao homem, que achámos entre os selvagens, que mandasse vir uma canôa, com gente que levasse um de nós á nau, para que esta tambem pudesse vir.

Ordenou-me que seguisse com os selvagens até á nau, ausentes della como estavamos já tres noites, sem que a gente de bordo soubesse que fim tinhamos levado.

Quando cheguei á distancia de um tiro da nau, fez-se lá um grande alarido, pondo-se em guarda a maruja e não consentindo que mais perto chegassemos com a canôa. Gritaram-me, indagando do que havia acontecido, onde ficaram os outros e como é que vinha eu sózinho naquella canôa cheia de selvagens. Calei-me; não[Pg 48] respondi, porque o Capitão me ordenára que fingisse estar triste e observasse o que se fazia a bordo.

Como lhes não respondi, diziam lá entre si: "Aqui ha coisa; os outros, de certo, estão mortos e estes agora vêm com aquelle só, para armar-nos uma cilada e tomar o navio". Queriam então atirar contra nós, porém chamaram-me ainda uma vez. Comecei então a me rir e lhes disse que ficassem tranquillos, pois que lhes trazia boas novas, e com isso permittiram que me aproximasse. Contei então o que se tinha passado, o que muito os alegrou, e os selvagens voltaram sózinhos. Seguimos logo com a nau até perto das cabanas, onde fundeámos, á espera das outras naus, que se tinham desgarrado por effeito da tempestade.

A aldeia onde moravam os selvagens chamava-se Acuttia[30] e o homem que lá achámos chamava-se João Fernandez Biscainho, da cidade de Bilbáo. Os selvagens eram Carios [Carijós] e trouxeram-nos muita caça e peixe, dando-lhes nós anzóes em troca.


CAPITULO XI

Como chegou a outra nau da nossa companha, que se tinha
desgarrado e onde vinha o primeiro piloto

Com cerca de tres semanas de espera, chegou-nos a nau em que vinha o primeiro piloto; mas a terceira nau era perdida de todo e nada mais soubemos della.

Apparelhámos, então, para sair e fizemos provisão para 6 mezes, pois havia ainda cerca de 300 leguas de viagem por mar. Quando tudo estava prestes, aconteceu-nos perder a nau grande no porto, o que impediu a nossa partida.

[Pg 49]

Ficámos ahi dois annos no meio de grandes perigos e soffrendo fome. Tinhamos que comer lagartos, ratos do campo e outros animaes exquisitos, que logravamos colher, assim como mariscos que vivem nas pedras e muitos bichos extravagantes. Os selvagens que nos davam mantimentos, só o fizeram emquanto recebiam presentes de nossa parte; fugiram depois para outros logares e como não podiamos fiar-nos nelles, dissuadimo-nos de ahi continuar com perigo de perecer.

Deliberámos, pois, que a maior parte dos nossos devia ir por terra para a provincia de Sumption[31], dahi distante cerca de 300 milhas. Os outros iriam no navio que restava. O capitão conservava alguns de nós, que iriam por agua com elle. Os que iam por terra levavam mantimentos e alguns selvagens. Muitos delles, é certo, morreram de fome no sertão; mas os outros chegaram ao seu destino como depois soubemos; entretanto, para o resto dos nossos homens o navio era pequeno demais para navegar no mar.


CAPITULO XII

Como deliberámos ir a S. Vincente, que era dos portuguezes,
a arranjar com elles um navio para fretar, e terminar
assim a nossa viagem; porém, naufragamos e não
sabiamos a que distancia estavamos de S. Vincente

Os portuguezes têm perto da terra firme uma ilha denominada S. Vincente (Urbioneme[32], na lingua dos selvagens). Esta ilha se acha a cerca de 70 milhas do logar onde estavamos. Era nossa intenção irmos até lá, a vermos si possivel era havermos[Pg 50] dos portuguezes um barco de frete e seguirmos até o Rio de la Platta, pois que o que tinhamos era pequeno demais para nós todos. A este fim, alguns dos nossos partiram com o capitão Salasar para a ilha de S. Vincente; mas nenhum de nós tinha lá estado, excepto um de nome Ramon que se obrigou a mostrar a ilha.

Saímos, pois, do forte de Inbiassape[33] que se acha no gráu 28, ao sul do Equinoxio, e chegámos cerca de dois dias depois da[Pg 51] nossa partida a uma ilha chamada Alkatrases[34], mais ou menos a 40 milhas do logar de onde saímos. Ali o vento se tornou contrario e nos obrigou a ancorar. Na ilha havia muitos passaros maritimos chamados Alkatrases, que são faceis de apanhar. Era tempo da incubação. Desembarcámos, para procurar agua potavel e encontrámos cabanas velhas e cacos de panellas dos selvagens, que lá tinham morado. Tambem achámos umas pequenas fontes na rocha. Ali matámos muitos daquelles passaros e lhes levámos os ovos para bordo, onde os cozinhámos. Acabada a refeição, assaltou-nos grande tempestade do sul que nos fez receiar largassem as ancoras e fosse a nau arremessada sobre os rochedos. Isto já pela tarde, e pensavamos ainda alcançar o porto chamado Caninee[35]. Mas anoiteceu antes de chegarmos, e não pudémos entrar. Afastámo-nos então de terra com grande perigo, pensando a cada instante que as vagas despedaçassem o navio, pois que perto da terra são ellas muito maiores do que ao longe no alto mar.

Durante a noite tinhamos-nos afastado tanto, que de manhã já não enxergámos mais a terra. Sómente muito depois, appareceu ella á vista, mas a tempestade era tamanha, que pensámos não resistir. Então aquelle dos nossos que já aqui tinha estado julgou reconhecer S. Vincente, e aproámos para lá. Uma grande neblina, porém, nos não deixou reconhecer bem a terra e tivemos de alijar tudo que era pesado para aliviar o navio. Estavamos com muito medo, ainda assim avançámos com o intuito de encontrar o porto, onde moram portuguezes, mas nos enganámos.

Quando emfim a nevoa se dissipou um pouco, deixando ver terra, disse Ramon que se lembrava de estar o porto ali á nossa[Pg 52] frente e bastava dobrar o promontorio para o alcançarmos por detráz. Seguimos então; mas quando chegámos só vimos a morte, porque não era ali o porto, o que nos obrigou a embicar para a terra e naufragar. As ondas batiam medonhamente contra a terra, e rogámos a Deus que nos salvasse a alma, fazendo o que os marinheiros costumam quando estão em perigo de naufragio.

Ao chegarmos ao ponto onde as vagas arrebentavam, suspendiam-nos ellas tão alto como si estivessemos sobre uma muralha. Logo ao primeiro baque em terra a nau se despedaçou. Alguns saltavam no mar e nadavam para a costa, outros ali chegavam agarrados aos destroços do navio. Assim Deus nos ajudou a chegar vivos em terra, continuando o vento e a chuva, que quasi nos enregelavam.


CAPITULO XIII

Como viemos a saber em que paiz de selvagens
tinhamos naufragado

Chegando á terra, demos graças a Deus que nos concedeu de alcançar vivos a costa, ainda que inquietos por não sabermos em que logar estavamos, visto que o Ramon não conhecia aquella paragem, nem sabia si estavamos longe ou perto de S. Vincente, ou si ali havia selvagens que nos pudessem fazer mal. Um dos companheiros, de nome Claudio, que era francez, começou a correr pela praia para se aquecer, quando de repente reparou numas casas que ficavam por detráz do matto e que se pareciam com casas de christãos. Dirigiu-se então para lá e deu com um logar onde moravam portuguezes e se chamava Itenge-Ehm[36], cerca de duas milhas[Pg 53] distante de S. Vincente. Contou-lhes então o nosso naufragio e o muito frio que soffriamos sem termos para onde ir. Quando isso ouviram viéram correndo ao nosso encontro e nos levaram para suas casas, dando-nos roupas. Ahi permanecemos alguns dias, até ganharmos forças.

Deste logar, fomos por terra até S. Vincente, onde os portuguezes nos receberam bem e nos déram alimento por algum tempo. Uma vez verificada a perda das nossas naus, mandou o Capitão um navio portuguez á busca dos outros companheiros nossos que tinham ficado em Byassape[37], o que se realizou.


CAPITULO XIV

Como está situado S. Vincente

São Vincente é uma ilha muito proxima da terra firme e onde ha dois logares, um denominado em portuguez S. Vincente e na lingua dos selvagens—Orbioneme[38]. O outro, que dista cerca de 2 leguas, chama-se Ywawasupe[39], além de algumas casas na ilha que se chamam Ingenio[40], nas quaes se faz assucar. Os portugueses, que ahi moram, têm por amiga uma nação brasilica de nome Tuppin Ikin[41], cujas terras se estendem pelo[Pg 54] sertão a dentro, cerca de 80 leguas e ao longo do mar umas 40 leguas. Esta nação tem inimigos para ambos os lados, para o Sul e para o Norte. Seus inimigos para o lado do Sul chamam-se Carios [Carijós] e os do lado do Norte Tuppin-Inba. Apelidam-nos Tawaijar[42] os seus contrarios, o que quer dizer inimigo. Soffrem-lhes os portuguezes muitos damnos e ainda hoje delles se arreceiam.

[Pg 55]


CAPITULO XV

Como se chama o logar donde lhes vem a maior perseguição
e como está situado

A cinco milhas de S. Vincente ha um logar denominado Brikioka[43], onde os inimigos selvagens primeiro chegam, para dahi seguirem por entre uma ilha chamada Santo Maro[44] e a terra firme.

Para impedir este caminho aos indios, havia uns irmãos mamelucos, oriundos de pae portuguez e mãe brasileira, todos christãos e tão versados na lingua dos christãos, como na dos selvagens. O mais velho chamava-se Johan de Praga [João de Braga], o segundo Diego de Praga [Diogo de Braga], o terceiro Domingo de Praga [Domingos de Braga], o quarto Francisco de Praga [Francisco de Braga], o quinto Andréa de Praga [André de Braga] e o pae chamava-se Diego de Praga [Diogo de Braga].

Cerca de dois annos antes da minha vinda, os cinco irmãos tinham decidido, com alguns índios amigos, edificar ali uma casa forte para deter os contrarios, o que já tinham executado.

A elles se ajuntaram mais alguns portuguezes, seus aggregados, porque era a terra boa. Os inimigos Tuppin-Inbás, logo que isso descobriram se prepararam na sua terra, d'ali distante cerca de 25 milhas, e vieram uma noite com 70 canôas e, como de seu costume, atacaram de madrugada. Os mamelucos e os portuguezes correram para uma casa, que tinham feito de páu a pique e ahi se[Pg 56] defenderam. Os outros selvagens fugiram para suas casas e resistiram quanto pudéram. Assim morreram muitos inimigos. Mas por fim venceram estes e incendiaram o sitio de Brikioka; capturaram todos os selvagens, mas aos christãos, que eram uns oito mais ou menos, e aos mamelucos nada puderam fazer porque Deus quiz salval-os. Aos outros selvagens, porém, que tinham capturado, esquartejaram-n'os e repartiram-n'os entre si, depois do que voltaram para sua terra.


CAPITULO XVI

Como os portugueses reedificaram Brikioka e depois
fizeram uma casa forte na ilha Santo Maro

Depois disto pensaram as autoridades e o povo que era bom não abandonar este logar, mas que cumpria fortifical-o, pois que deste ponto todo o pais podia ser defendido. E assim o fizeram.

Quando os inimigos perceberam que o logar lhes offerecia grande difficuldade de ataque, vieram de noite, mas por agua, e aprisionaram a quantos encontraram em S. Vincente. Os que moravam mais longe pensavam não correr perigo, visto existir uma casa forte na vizinhança, pelo que soffreram muito.

Por causa disso, deliberaram os moradores edificar outra casa ao pé da agua, e bem de fronte de Brikioka, e ahi collocar canhões e gente para impedir os selvagens. Assim tinham começado um forte na ilha; mas não o tinham acabado, á falta de artilheiro portuguez que se arriscasse a morar ali.

Fui ver o logar. Quando os moradores souberam que eu era allemão e que entendia de artilharia, pediram-me para ficar no forte e ajudal-os a vigiar o inimigo. Promettiam dar-me companheiros e um bom soldo. Diziam tambem que si eu o fizesse, seria estimado pelo Rei, porque este costumava ver com bons olhos[Pg 57] aquelles que, em terras assim novas, contribuiam com seu auxilio e seus conselhos.

Contractei com elles para servir 4 mezes na casa, depois do que um official devia vir por parte do Rei, trazendo navios, e edificar ali um forte de pedra, para maior segurança; o que foi feito. A maior parte do tempo estive no forte com mais tres e tinha algumas peças commigo, mas estava sempre em perigo dos selvagens, porque a casa não estava bem segura. Era necessario estar alérta para que os selvagens não nos surprehendessem durante a noite, o que varias vezes tentaram; porém, Deus sempre nos ajudou, e sempre os percebemos.

Depois de alguns mezes, chegou um official por parte do Rei, pois que lhe tinham escripto quão grande era o atrevimento dos selvagens e o mal que os mesmos lhe faziam. Tambem tinham escripto quão bella era esta terra e não ser prudente abandonal-a. Para então melhorar essas condições, veiu o governador Tome de Susse [Thomé de Souza] para vêr o paiz e o logar que queriam fortificar.

Contaram-lhe tambem os serviços que eu tinha prestado; e que eu tinha ficado na casa forte onde aliás nenhum portuguez queria permanecer, por estar muito mal defendida.

Isso o agradou muito e elle disse que ia falar ao Rei a meu respeito, si Deus lhe permittisse voltar para Portugal, com o que eu havia de aproveitar.

Acabou, porém, o tempo de meu serviço, que era de quatro mezes, e pedi licença. O governador, com todo o povo, pediu-me que ficasse por mais algum tempo. Respondi que sim e que ficava ainda por dois annos; e quando acabasse este tempo, tinham de deixar-me voltar no primeiro navio para Portugal, onde o Rei havia de recompensar os meus serviços. Para este fim, deu-me o governador, por parte do Rei, as minhas privilegia [patentes], como é de costume dar-se aos artilheiros reaes, que as pedem. Fizeram a casa de pedras, puzeram dentro alguns canhões e ordenaram-me que zelasse bem da casa e das armas.


[Pg 58]

CAPITULO XVII

Como e por que motivo tinhamos de observar os inimigos
mais numa época do anno do que em outra

Era necessario estar mais alerta em duas épocas do anno do que no resto, quando os inimigos tratavam especialmente de invadir com forças o paiz. E estas duas épocas eram: primeiro, no mez de novembro, quando umas fructas de nome Abbati[45] amadureciam, e das quaes preparavam uma bebida chamada Kaa wy[46]. Além desta, ha tambem uma raiz denominada mandioka, que misturam com o abbati, quando maduro, para fazer a sua bebida. Quando voltam de uma guerra, querem ter os abbatis para fabricarem essa bebida, que é para quando comem os inimigos, si tiverem capturado algum, e durante o anno inteiro esperam com impaciencia o tempo dos abbatis.

Tambem em agosto deviamos esperal-os, porque neste tempo vão á caça de uma especie de peixe, que então sáem do mar para agua doce, onde desovam. Estes peixes chamam elles em sua lingua Bratti[47] [paratí] e os espanhóes lhes dão o nome de Lysses. Neste tempo costumam sair para o combate, com o fim de ter tambem mais abundancia de comida. Os taes peixes, elles apanham com pequenas redes ou matam-n'os com flechas, e levam-n'os fritos comsigo, em grande quantidade; tambem fazem delles uma farinha, a que chamam Pira-Kui[48].


[Pg 59]

CAPITULO XVIII

Como fui aprisionado pelos selvagens e como
isso aconteceu

Tinha commigo um selvagem de uma tribu denominada Cariós, que era meu escravo. Elle caçava para mim e com elle fui ás vezes ao matto.

[Pg 60]

Aconteceu, porém, uma vez que um espanhól da Ilha S. Vincente veiu me visitar na ilha de Santo Maro, que fica a cerca de 5 milhas, e mais um allemão de nome Heliodorus Hessus, filho de Eobanus, fallecido. Este morava na ilha de S. Vincente, num ingenio[49] onde se fabricava assucar. Este ingenio pertencia a um genovez que se chamava Josepe Ornio[50] [Giuseppe Adorno] e o Heliodorus era caixeiro e gerente do negociante, dono do ingenio (ingenio são casas onde se fabrica assucar). Já conhecia este Heliodorus, porque quando naufraguei com os espanhóes, estava elle com a gente que encontrámos em S. Vincente e ficou desde então meu amigo. Veio elle para ver-me, pois tinha sabido talvez que eu estava doente.

No dia anterior tinha eu mandado o meu escravo para o matto a procurar caça, e queria ir buscal-a no dia seguinte para ter alguma coisa que comer, pois naquelle paiz não ha muita coisa mais, além do que ha no matto.

Quando eu ia indo pelo matto, ouvi dos dois lados do caminho uma grande gritaria, como costumam fazer os selvagens, e avançando para o meu lado. Reconheci então que me tinham cercado e apontavam as flechas sobre mim e atiravam. Exclamei: Valha-me Deus! Mal tinha pronunciado estas palavras quando me estenderam por terra, atirando sobre mim e picando-me com as lanças. Mas não me feriram mais (graças a Deus) do que em uma perna, despindo-me completamente. Um tirou-me a gravata, outro o chapéu, o terceiro a camisa, etc., e começavam a disputar a minha posse, dizendo um que tinha sido o primeiro a chegar a mim, e o outro, que me tinha aprisionado. Emquanto isto se dava, bateram-me os outros com os arcos. Finalmente, dois levantaram-me, nú como estava, pegando-me um em um braço e o outro, no outro, com muitos atráz de mim e assim correram commigo pelo matto até o mar, onde tinham suas canôas. Chegando ao mar vi, á distancia de um tiro de pedra, uma ou duas canôas suas, que tinham tirado para terra,[Pg 61] por baixo de uma moita e com uma porção delles em roda. Quando me avistaram, trazido pelos outros, correram ao nosso encontro, enfeitados com plumas, como era costume, mordendo os braços, fazendo-me com isso comprehender que me queriam devorar. Diante de mim, ia um rei com o bastão que serve para matar os prisioneiros. Fez um discurso e contou como me tinham capturado e feito seu escravo o perot[51] (assim chamam aos portuguezes), querendo vingar em mim a morte de seus amigos. E ao levarem-me ate as canôas, alguns me davam bofetadas. Apressaram-se então em arrastar as canôas para a agua, de medo que em Brikioka já estivessem alarmados, como de facto estavam.

Antes, porém, de arrastarem as canôas para a agua, maniataram-me e, como não eram todos do mesmo logar, cada aldeia ficou zangada por voltar sem nada e disputavam com aquelles que me detinham. Uns diziam que tinham estado tão perto de mim como os outros, e queriam tambem ter sua parte, propondo matar-me immediatamente.

Eu orava e esperava o golpe; porém, o rei, que me queria possuir, disse que desejava levar-me vivo para casa, para que as mulheres me vissem e se divertissem a minha custa, depois do que matar-me-ia e Kawewi pepicke[52], isto é, queriam fabricar a sua bebida, reunir-se para uma festa e me devorar conjunctamente. Assim me deixaram e me amarraram quatro cordas ao pescoço, fazendo-me entrar numa canôa emquanto ainda estavam em terra. As pontas das cordas amarraram na canôa, que arrastaram para a agua para voltar para a aldeis.


[Pg 62]

CAPITULO XIX

Como queriam voltar e os nossos chegaram para me reclamar,
e como voltaram para elles e combateram

Ao pé da ilha, na qual fui aprisionado, ha uma outra ilha pequena, onde se aninham uns passaros maritimos de nome Uwara[53], que tem pennas vermelhas. Perguntaram-me os indios si os seus inimigos Tuppin Ikins tinham estado lá este anno, para apanharem os passaros e os filhotes. Disse-lhes que sim, mas quizeram ver elles mesmos, pois estimam muito as pennas daquelles passaros, porque todos os seus enfeites são geralmente de pennas. A particularidade deste passaro é que suas primeiras pennas são pardacentas, ficando pretas quando começam a voar, tornando-se depois encarnadas, como tinta vermelha. Fôram então para a ilha, pensando encontrar ahi os passaros. Quando tinham chegado a cerca de dez tiros de espingarda do logar onde tinham deixado as canôas, voltaram-se e avistaram um bando de Tuppin Ikin e alguns portuguezes entre elles, porque um escravo que me tinha acompanhado, quando fui agarrado, escapára e dera alarma quando me prenderam. Pensavam vir livrar-me e gritaram para os que me capturaram que viessem combater, si tinham coragem. Voltaram então com a canôa, para os que estavam em terra e estes atiraram com sarabatanas[54] e flechas, e os da canôa responderam; desataram as minhas mãos, mas as cordas do meu pescoço continuavam fortemente atadas.

[Pg 63]

O rei[55], que estava commigo na canôa, tinha uma espingarda e um pouco de polvora, que um francez lhe dera em tróca de páu prasil. Ordenou-me que atirasse sobre os que estavam em terra.

Depois de terem combatido um pouco, ficaram com medo de que os outros tivessem canôas para os perseguir, pelo que fugiram. Tres delles tinham sido feridos. Passaram a cerca de um tiro de falconete[56] de Brikioka, onde eu costumava estar, e quando passámos de fronte fizeram-me ficar em pé, para que meus companheiros me vissem. Do forte dispararam dois grandes tiros, porém nos não alcançaram.

Emquanto isso, saíram algumas canôas de Brikioka para nos alcançar, mas os selvagens fugiram de pressa, e vendo os amigos que nada podiam fazer, voltaram.


CAPITULO XX

O que se passou na viagem para a terra delles

Como havia mais ou menos sete milhas de caminho de Brikioka á terra delles, seriam, conforme a posição do sol, cerca de 4 horas da tarde deste mesmo dia quando me capturaram.

Fôram a uma ilha e puxaram as canôas para terra, pretendendo ficar ahi esta noite e me tiraram da canôa. Uma vez em terra, nada podia enxergar porque me tinham ferido na cara, nem podia andar por causa da ferida na perna, pelo que fiquei deitado sobre a areia. Cercaram-me, com ameaças de me devorar.

Estando nesta grande afflicção, pensava no que nunca tinha[Pg 64] cogitado neste valle de lagrimas, onde vivemos. Com os olhos banhados em pranto, comecei a cantar do fundo do meu coração o psalmo: "A ti imploro meu Deus, no meu pezar, etc." Os selvagens diziam então: "Vêde como elle chora, ouvi como se lamenta".

Parecia-lhes, no entanto, que não era prudente ficarem na ilha durante a noite, e se embarcaram de novo, para ir a terra firme, onde estavam umas cabanas que antes tinham levantado. Quando chegámos, era alta noite. Accenderam então fogueiras e conduziram-me para lá. Ahi tive de dormir numa rêde, que na lingua delles se chamava Inni e é a cama delles, que amarram a dois páus acima do chão, ou, quando estão ao matto, a duas arvores. As cordas que eu tinha no pescoço, amarraram-n'as por cima numa[Pg 65] arvore e se deitaram em roda de mim, caçoando commigo e me chamando Schere inbau ende[57]: "Tu és meu bicho amarrado."

Antes de raiar o dia saíram de novo, remaram todo o dia e quando o sol descambou no horizonte faltavam-lhes ainda duas milhas para chegar ao logar onde queriam pousar. Levantou-se então grande nuvem negra por detráz de nós, tão medonha, que os obrigou[Pg 66] a remar com toda a pressa para alcançar a terra, por causa do vento e dos bulcões.

Quando viram que já não podiam escapar, disseram-me: Ne mungitta dee, Tuppan do Quabe, amanasu y an des Imme Ranni me sisse[58], o que quer dizer: "Pede a teu Deus, que a grande chuva e vento não nos façam mal." Calei-me, fiz a minha oração a Deus, como pediram, e disse: "Ó tu, Deus Omnípotente, que tens o poder na terra e no céu; tu que do começo auxiliaste aquelles que imploram o teu nome e que os escutaste, mostra a tua clemencia a estes pagãos, para que eu saiba que tu ainda estás commigo e para que os selvagens, que te não conhecem, possam vêr que tu, meu Deus, ouviste a minha oração."

Estava deitado na canôa e amarrado, de modo que não podia ver o tempo, mas elles voltavam-se continuamente para tráz e começavam a dizer: "O qua moa amonassu"[59], o que quer dizer: "A grande tempestade fica para tráz." Ergui-me então um pouco, olhei para tráz e vi que a grande nuvem se dissipava. Agradeci então a Deus.

Chegando em terra, fizeram commigo como d'antes; amarraram-me a uma arvore e deitaram-se ao redor de mim, dizendo que estavamos agora perto da terra delles, onde chegariamos no dia seguinte á tarde, o que muito pouco me alegrou.


CAPITULO XXI

Como me trataram de dia, quando me levaram ás suas casas

No mesmo dia, a julgar pelo sol, devia ser pela Ave-Maria, mais ou menos, quando chegámos ás suas casas; havia já tres dias que estavamos viajando. E até o logar onde me levaram,[Pg 67] contavam-se trinta milhas de Brickioka[60], onde eu tinha sido aprisionado.

Ao chegarmos perto das suas moradas, vimos que era uma aldeia com sete casas e se chamava Uwattibi[61]. Entrámos numa praia que vai abeirando o mar e ali perto estavam as suas mulheres numa plantação de raizes, a que chamam mandioca. Na mesma plantação havia muitas mulheres, que arrancavam destas raizes, e fui obrigado então a gritar-lhes na sua lingua: "A Junesche been ermi vramme[62], isto é: "Eu, vossa comida, cheguei".

Uma vez em terra, correram todos das casas (que estavam situadas num morro), moços e velhos, para me verem. Os homens iam com flechas e arcos para as suas casas e me recommendaram ás mulheres que me levassem comsigo, indo algumas adiante, outras atráz de mim. Cantavam e dançavam unisonos os cantos que costumam, como canta sua gente quando está para devorar alguem.

Assim me levaram até a Ywara[63], deante de suas casas, isto é, á sua fortificação, feita de grossas e compridas achas de madeira, como uma cerca ao redor de um jardim. Isto serve contra os inimigos. Quando entrei, correram as mulheres ao meu encontro e me deram bofetadas, arrancando a minha barba e falando em sua lingua: "Sche innamme pepike a e"[64], o que quer dizer: "Vingo em ti o golpe que matou o meu amigo, o qual foi morto por aquelles entre os quaes tu estiveste."

Conduziram-me, depois, para dentro de casa, onde fui obrigado a me deitar em uma inni. Voltaram as mulheres e continuaram a me bater e maltratar, ameaçando de me devorar.

[Pg 68]

Emquanto isto, ficavam os homens reunidos em uma cabana e bebiam o seu Kawi, tendo comsigo os seus deuses, que se chamam Tammerka[65], em cuja honra cantavam, por terem prophetizado que me haviam de prender.

Tal canto ouvi durante uma meia hora e não appareceu um só homem; sómente mulheres e crianças estavam commigo.


CAPITULO XXII

Como os meus dois amos vieram a mim e me disseram que
me tinham dado a um amigo que me devia guardar
e matar quando me quizessem comer

Não conhecia eu ainda seus costumes, tão bem como depois, e pensava agora que se preparavam para me matar. Logo depois vieram os dois que me capturaram, um de nome Ieppipo Wasu e seu irmão Alkindar Miri[66], e me contaram como me tinham dado ao irmão de seu pae, Ipperu Wasu[67], por amizade. Este me devia conservar e matar quando me quizessem comer, e assim ganhar um nome á minha custa.

Como este mesmo Ipperu Wasu tinha capturado um escravo, havia um anno, e por amizade delle fizera presente a Alkindar Miri, este o matou e ganhou com isso um nome. Alkindar Miri tinha então promettido a Ipperu Wasu de fazer presente a elle do primeiro que capturasse. Este era eu.

[Pg 69]

Os dois que me capturaram disseram-me mais: "Agora, as mulheres te levarão para fóra, Aprasse"[68]. Não comprehendi então esta palavra, que quer dizer dançar. Puxaram-me para fóra, pelas cordas que ainda tinha ao pescoço, até a praça. Viéram todas as mulheres que havia nas sete cabanas e me levaram, e os homens se fôram embóra. Umas pegaram-me nos braços, outras nas cordas que tinha ao pescoço, de forma que quasi não podia respirar. Assim me levaram; eu não sabia o que queriam fazer de mim e me lembrava do[Pg 70] soffrimento do nosso redemptor Jesus Christo, quando era maltratado innocentemente pelos infames judeus. Por isso, consolei-me e me tornei paciente. Conduziram-me até a cabana do rei, que se chamava Uratinge Wasu[69], que quer dizer na minha lingua "o grande passaro branco". Deante da cabana do rei, havia um monte de terra fresca, e ali me assentaram, emquanto algumas mulheres me seguravam. Pensei então que queriam matar-me e procurava com os olhos o Iwera Pemme[70], instrumento com que matam gente, e perguntei si já me queriam matar. Não me responderam, mas veiu uma mulher que tinha um pedaço de crystal em uma coisa que parecia um páu arcado, cortou-me com este crystal as pestanas dos olhos e queria cortar-me tambèm a barba. Mas isto não quiz supportar e disse que me matassem com barba e tudo. Disseram então que me não queriam matar ainda e me deixaram a barba. Porém, alguns dias depois, m'a cortaram com uma tesoura que os francezes lhes tinham dado.


CAPITULO XXIII

Como dançaram commigo deante das cabanas nas quaes
guardam seus idolos "Tammerka"

Depois conduziram-me do logar onde me cortaram as pestanas para as cabanas, onde guardavam os seus Tammerka, ou idolos. Formaram um circulo ao redor de mim, ficando eu no centro, com duas mulheres; amarraram-me numa perna umas coisas que chocalhavam e na nuca collocaram-me uma outra coisa, feita de pennas de passaros, que excedia a cabeça e que se chama na lingua delles[Pg 71] Arasoya[71]. Depois começaram as mulheres a cantar e, conforme um som dado, tinha eu de bater no chão com o pé, em que estavam atados os chocalhos, para chocalhar em acompanhamento do canto. A perna ferida me doía tanto, que eu mal podia conservar-me de pé, pois a ferida ainda não estava curada.

[Pg 72]


CAPITULO XXIV

Como depois da dança me entregaram a Ipperu Wasu,
que me devia matar

Acabada a dança, fui entregue a Ipperu Wasu. Ali estava muito bem guardado. Tinha ainda algum tempo para viver. Trouxeram todos os idolos que havia nas cabanas e collocaram ao redor de mim, dizendo que elles tinham prophetizado a captura de um portuguez. Disse eu então: "Estas coisas não têm poder, nem podem falar, e é falso que eu seja portuguez. Sou amigo e parente dos francezes e a terra de onde eu sou, chama-se Allemanha". Responderam-me que isso devia ser mentira, porque si eu fosse amigo dos francezes, nada tinha que fazer entre os portuguezes; pois sabiam bem que os francezes eram tão inimigos dos portuguezes, como elles mesmos. Os francezes vinham todos os annos com embarcações e lhes traziam facas, machados, espelhos, pentes e tesouras; e elles lhes davam em troca páu-prasil, algodão e outras mercadorias, como enfeites de pennas e pimenta. Por isso, eram elles seus amigos; os portuguezes, assim nunca fizeram. Tinham vindo os portuguezes ha muitos annos a esta terra, e tinham, no logar onde ainda moravam, contrahido amizade com os seus inimigos. Depois, tinham-se dirigido, elles tambem, aos portuguezes para negociar, e de boa fé foram aos seus navios e entraram nelles, tal como faziam ainda hoje com os francezes; mas quando os portuguezes viram que havia bom numero nos navios, os atacaram, amarraram e entregaram aos seus inimigos, que os mataram e devoraram. Alguns tinham sido tambem mortos a tiros e muitos soffreram outras crueldades mais. Diziam que os portuguezes tinham assim praticado, porque vieram guerreal-os, com seus inimigos.


[Pg 73]

CAPITULO XXV

Como os que me capturaram estavam zangados e se queixavam
de que os portuguezes mataram a tiro seu pae,
que elles queriam vingar em mim

E diziam mais que os portuguezes tinham atirado no braço do pae dos dois irmãos que me capturaram, do que veiu elle a fallecer; e esta morte do pae queriam vingar em mim. Eu repliquei que não deviam vingar-se em mim, porque eu não era portuguez o tinha vindo, havia pouco, com os castelhanos; que eu tinha naufragado e por isso tinha lá ficado.

Entre os indios havia um moço que tinha sido escravo dos portuguezes. Os selvagens, que moravam com os portuguezes, tinham ido guerrear os Tuppin-Inba e tomado uma aldeia inteira. Os velhos foram comidos e os moços foram trocados por mercadorias com os portuguezes. Este moço era um dos que tinham sido vendidos e ficara perto de Brickioka com o seu senhor, que se chamava Antonio Agudin, um gallego.

A este mesmo escravo tinham capturado, uns tres mezes antes da minha captura.

Como era da mesma raça que elles, não o mataram. Elle me conhecia. Perguntaram-lhe quem eu era. Elle então disse que era verdade; que um barco tinha naufragado e os homens que nelle havia chamavam-se castelhanos e eram amigos dos portuguezes. Com elles estava eu, e nada mais sabia elle de mim.

Ouvindo agora como tambem antes que havia francezes entre elles e que costumavam vir embarcados, insisti no que tinha dito e continuei: "que eu era amigo e parente dos francezes, que não me matassem, até que os francezes viessem e me reconhecessem". Guardaram-me então muito bem, porque havia ali alguns francezes que os navios tinham deixado para carregar pimenta.


[Pg 74]

CAPITULO XXVI

Como um francez, que os navios deixaram entre os selvagens,
chegou para me ver e lhes recommendou que me
devorassem, porque eu era portuguez

Havia um francez a quatro milhas de distancia do logar das cabanas, onde eu estava. Logo que soube da noticia, veiu para uma das cabanas em frente daquella em que eu estava. Vieram então os selvagens me chamar: "Está aqui um francez, queremos ver agora si és francez ou não". Isto me alegrou, e disse commigo: "Elle é christão, elle falará para o bem".

Conduziram-me nú á sua presença. Era moço e os selvagens o chamavam Karwattuware[72]. Falou-me em francez, mas eu não podia entendel-o bem. Os selvagens estavam presentes e escutavam. Como eu lhe não podia responder, disse elle aos selvagens, na lingua delles: "Matem-no e devorem-no, o scelerado é portuguez legitimo, vosso e meu inimigo". Comprehendi perfeitamente e pedi, por amor de Deus, que lhes dissesse que me não devorassem. Mas elle me disse: "Querem-te devorar". Lembrei-me então de Jeremias, cap. 17, onde diz: "Maldito seja o homem que nos outros homens confia". E com isso, saí dali com grande pezar no coração. Nos hombros tinha um pedaço de panno de linho, que me tinham dado (onde o teriam adquirido?), tirei-o (o sol me tinha queimado muito) e o arremessei aos pés do francez, dizendo a mim mesmo: "Si tenho de morrer, para que então cuidar em proveito dos outros da minha carne?" Conduziram-me então outra vez á cabana, onde me guardaram. Deitei-me na rede e Deus sabe quanto me considerava desgraçado. Comecei a me lamentar, cantando o psalmo:

[Pg 75]

Roguem ao Espirito Santo[73]
Que nos dê a verdadeira fé,
Que nos guarde até ao fim,
Quando sairmos desta triste vida.
Kyrioleys.

Disseram, então: "É legitimo portuguez, agora se lamenta e tem medo da morte".

O referido francez ficou dois dias nas cabanas e no terceiro foi-se embora. Então determinaram que se fizessem os preparativos para me matarem no primeiro dia, depois de tudo arranjado. Guardaram-me muito bem e escarneceram de mim, tanto os moços como os velhos.


CAPITULO XXVII

Como eu sentia fortes dores de dentes

Aconteceu que, emquanto eu estava reduzido a esta miseria (e como se costuma dizer—uma desgraça nunca vem só)—um dente começou a doer-me tanto, que quasi desanimei de todo. O meu senhor veiu a mim e me perguntou porque comia tão pouco. Respondi que me doía um dente. Voltou então com um instrumento de madeira e me quiz extrahir o dente. Disse-lhe que não me doía mais, mas elle queria extrahil-o por força. Porém, oppuz-me tanto que elle me deixou; mas disse que si eu não quizesse comer e engordar, matar-me-iam antes do tempo. Deus sabe quantas vezes eu pedi de coração, que, si fosse de sua vontade, me deixasse morrer sem que os selvagens o soubessem, para que elles não satisfizessem o seu desejo em mim.


[Pg 76]

CAPITULO XXVIII

Como me levaram ao seu rei supremo, chamado Konyan-bébe,
e o que ali fizeram commigo

Alguns dias depois, levaram-me para uma outra aldeia que elles chamam Arirab[74], para um rei, de nome Konyan-Bébe[75], que era o principal rei de todos. Ali se haviam reunido mais alguns em uma grande festa, a modo delles, e queriam me ver, pelo que me mandaram buscar naquelle dia.

Chegando perto das cabanas, ouvi um grande rumor de canto e de trombetas, e deante das cabanas havia umas quinze cabeças espetadas; eram de gente sua inimiga, chamada Markayas[76], e que tinha sido devorada. Quando me levaram para lá, disseram-me que as cabeças eram de seus inimigos e que estes se chamam Markayas. Fiquei com medo e pensei: "Assim farão commigo tambem!" Ao entrarmos nas cabanas, um dos meus guardas avançou e gritou com voz forte, para que todos o ouvissem: "Aqui trago o escravo, o portuguez," pensando que era coisa muito bôa ter o inimigo em seu poder. E falou muitas coisas mais, como é de costume, conduzindo-me até onde estava o rei sentado, bebendo com os outros, e estando já embriagados pela bebida que fazem, chamada Kawawy. Fitaram-me desconfiados e perguntaram: "Vieste como nosso inimigo?" Respondi: "Vim, mas não sou vosso inimigo." Deram-me então a beber. Já tinha ouvido falar muito do rei Konyan-Bébe, que devia ser um grande homem, um grande tyrano, para comer carne humana. Fui direito a um delles, que eu pensava ser elle, e lhe falei tal como me vieram as palavras, na sua lingua, e[Pg 77] disse: "És tu Konyan-Bébe, vives tu ainda?" "Sim," disse elle, "eu vivo ainda." Então repliquei: "Tenho ouvido falar muito de ti e que és um valente homem." Com isto, levantou-se e, cheio de si, começou a passear. Trazia elle uma grande pedra verde atravessada nos labios[77], como é costume delles. Fazem lambem rosarios brancos de uma especie de conchas, que é o seu enfeite. Um destes, tinha-o o rei ao pescoço, e era de mais de 6 braças de comprido. Por este enfeite vi que elle era um dos mais nobres.

[Pg 78]

Tornou a assentar-se e começou a me perguntar o que planejavam seus inimigos, os Tuppin-Ikins e os portuguezes. E disse mais: "Porque queria eu atirar sobre elle, em Brickioka?" Porque lhe contaram que eu era artilheiro e atirava contra elles. Então respondi que os portuguezes me tinham mandado e me obrigaram a isso. Disse elle então que eu tambem era portuguez, porque o francez, que me havia visto e a quem elle chamava "seu filho", lhe dissera que eu não sabia a sua lingua por ser portuguez legitimo. Eu disse então: "Sim, é verdade; estive muito tempo fóra daquella terra e tinha esquecido a lingua." Elle replicou que já tinha ajudado a capturar e comer cinco portuguezes e que todos tinham mentido. Só me restava então consolar-me e recommendar-me á vontade de Deus, porque comprehendi que devia morrer. Tornou então a me perguntar o que os portuguezes diziam delle e si tinham muito medo delle. Eu respondi: "Sim, elles falam muito de ti e das grandes guerras que tu lhes costumas fazer; mas agora fortificam melhor Brickioka." "Sim, continuou elle, queria de vez em quando captural-os", como me tinham capturado no matto.

Ainda mais contei eu a elle: "Sim, teus verdadeiros inimigos são os Tuppin-Ikins que preparam 25 canôas para virem atacar o teu paiz", como realmente tambem aconteceu.

Emquanto elle me fazia perguntas, ficavam os outros em pé, escutando. Em summa, perguntou-me muito e falou muito. Regozijava-se dos muitos portuguezes e dos selvagens, seus inimigos, que tinha morto. Emquanto isto se passava commigo, os que estavam bebendo na cabana acabaram com a bebida que ali havia; passaram então todos a uma outra cabana na qual continuaram a beber e por isso terminou a minha conferencia com o chefe.

Nas outras cabanas, continuaram suas zombarias commigo e o filho do rei atou-me as pernas em tres logares, obrigando-me a pular com os pés juntos. Riam-se disso e diziam: "Ahi vem a nossa comida pulando." Perguntei ao meu senhor que me levára até ahi, si era para me matar aqui. Respondeu-me que não, mas que era costume tratar assim os escravos. Tiraram-me então as cordas das pernas e me beliscaram, rodeando-me e falando; um disse que o[Pg 79] couro da cabeça era delle, outro que a barriga da perna lhe pertencia. Depois obrigaram-me a cantar e cantei versos religiosos. Queriam elles que eu os traduzisse. Disse então que tinha cantado do meu Deus. Elles respondiam que meu Deus era excremento, isto é, na lingua delles,—Teuire[78]. Taes palavras me maguaram e eu pensava: "Ó tu, Deus bondoso, como podes soffrer isto com paciencia?" Quando, no dia seguinte, todos na aldeia já me tinham visto e descarregado todos os insultos sobre mim, Konyan-Bébe disse aos que me guardavam que tomassem muito sentido commigo.

Levaram me então outra vez para fóra, para voltar a Uwattibi, onde me deviam matar. Gritavam atráz de mim que logo viriam á cabana de meu senhor para deliberarem sobre minha morte e me devorarem, mas meu senhor me consolou dizendo-me que tão cedo eu não seria morto.


CAPITULO XXIX

Como as 25 canôas dos Tuppin Ikins vieram, como eu tinha
dito ao rei, para atacar as cabanas onde eu estava

Emquanto isto, aconteceu que as 25 canôas dos selvagens, que eram amigos dos portuguezes, como eu tinha dito, e estavam promptos para ir á guerra antes de eu ser preso, vieram uma manhã para atacarem as cabanas.

Quando os Tuppin-Ikins investiram contra as cabanas e começaram a atirar sobre ellas, encheram-se de medo os de dentro e as mulheres queriam fugir. Disse-lhes eu então: "Vós me tendes por portuguez, vosso inimigo, dae-me um arco e flechas e deixae-me ir, quero ajudar-vos a defender as cabanas." Deram-me um arco e[Pg 80] flechas. Eu gritava e atirava ao modo delles o melhor que podia, e lhes dizia que tivessem animo, não havia perigo. Minha intenção era de atravessar a cerca ao redor das cabanas e correr para os outros, pois elles me conheciam e sabiam que eu estava na aldeia. Mas, vendo os Tuppin-Ikins que nada podiam fazer, voltaram outra vez para suas canôas e se foram embora. Quando bem longe já estavam elles, prenderam-me de novo.

[Pg 81]


CAPITULO XXX

Como os chefes se reuniram de noite, ao luar

Na tarde do dia em que os outros se foram, reuniram-se ao luar, na praça que fica entre as cabanas e conferenciaram a respeito da época em que me deviam matar e me conduziram para o meio delles, maltratando-me e fazendo zombaria de mim. Eu estava triste, olhei para a lua e pensei: "Oh, meu Deus e Senhor, ajuda-me[Pg 82] nesta afflicção, para que me veja livre." Perguntaram-me porque eu olhava para a lua. Então lhes respondi: "Vejo que ella está zangada", porque a figura que está na lua parecia-me tão terrível (Deus me perdôe) que eu pensava que Deus e todas as creaturas deviam estar zangadas commigo. Perguntou-me então o rei, que me queria matar, o chamado Jeppipo Wasu, um dos chefes das cabanas: "Com quem está zangada a lua?" Respondi-lhe: "Ella olha para tua cabana". Por causa destas palavras, começou elle a falar aspero commigo. Para contradizer isso, disse eu: "De certo não será com a tua cabana, ella está zangada com os escravos Cariós", (que tambem ha uma raça que assim se chama). "Sim, disse elle, sobre elles que venha a desgraça." Ficou nisso e não pensei mais sobre esta conversa.


CAPITULO XXXI

Como os Tuppin Ikins incendiaram uma outra aldeia,
chamada Mambukabe

No dia seguinte chegou a noticia, de uma aldeia chamada Mambukabe [Mambucaba], que os Tuppin Ikins tinham atacado, quando saíram do logar onde eu estava captivo; e os moradores tinham fugido, excepto um menino que elles captivaram, e depois foram incendiadas as cabanas. Então o Jeppipo Wasu (que tinha poder sobre mim e que muito me maltratava) foi para lá, porque eram seus amigos e parentes e queria ajudal-os a fazer novas cabanas. Por isso, levou comsigo todos os amigos de sua aldeia e teve a lembrança de levar a farinha de raizes [mandioca], para fazer a festa, e lá me devorarem. E quando se foi embora, ordenou áquelle a quem me tinha entregue, chamado Ipperu Wasu, que me guardasse bem. Ficaram então fóra mais de quinze dias e lá prepararam tudo.


[Pg 83]

CAPITULO XXXII

Como chegou um navio de Brickioka e perguntaram por mim.
O que disseram a meu respeito

Nesse interim, chegou um navio dos portuguezes de Brickioka, deitou ancora não longe do logar em que eu estava captivo e disparou um tiro de peça[79], para que os selvagens ouvissem e viessem falar com elles.

Quando perceberam isto, disseram-me: "Ahi vêm os teus amigos, os portuguezes, e querem talvez saber si ta ainda vives ou te comprar." Disse eu então: "De certo é meu irmão", porque eu suppunha que si o navio dos portuguezes passasse por ali, perguntariam por mim. Para que os selvagens não pensassem que eu era portuguez, disse-lhes que tinha um irmão que tambem era francez e estava com os portuguezes. Mas não queriam acreditar que eu não era portuguez, e foram tão perto do navio que puderam chegar á fala. Os portuguezes então perguntaram como eu passava. E elles responderam que não se importavam commigo. Quando eu vi o navio ir-se embora, sabe Deus o que fiquei pensando. Elles disseram entre si: "Temos mesmo o homem; já mandam navios atráz delle."


[Pg 84]

CAPITULO XXXIII

Como o irmão de Jeppipo Wasu chegou de Mambukabe
e queixou-se a mim de que seu irmão, sua mãe e todos
os outros estavam doentes e pediu-me que eu fizesse
com que meu Deus lhes désse outra vez a saude

Esperava eu todos os dias os outros que, como antes disse, estavam fóra, preparando-se contra mim. Um dia depois ouvi alguem gritar na cabana do rei que estava ausente. Tive medo pensando que voltavam, porque é costume dos selvagens não se ausentarem mais de quatro dias. Quando então voltam, seus amigos gritam de alegria. Não muito depois desta gritaria, veiu um delles ter commigo e me disse: "O irmão do teu senhor chegou e diz que os outros ficaram doentes." Fiquei alegre e pensei: "Aqui Deus quer fazer alguma coisa." Pouco tempo depois veiu o irmão do meu senhor á cabana onde eu estava, assentou-se ao pé de mim, começou a se lamentar e a dizer que seu irmão, sua mãe e os filhos de seu irmão tinham todos caído doentes, e seu irmão o tinha mandado a mim para me dizer que eu devia fazer com que meu Deus lhes désse saude, e accrescentou: "Meu irmão está pensando que teu Deus está zangado." Eu lhe disse que sim, que meu Deus estava zangado, porque elles me queriam devorar e tinham ido a Mambukabe a fazerem os preparativos. E lhe disse mais: "Vós dizeis que eu sou portuguez, e eu não o sou." E accrescentei: "Vae ter com teu irmão, para que elle volte a sua cabana e eu falarei a meu Deus, para que elle fique bom." Então respondeu-me que o irmão estava muito doente, e não podia vir; que elle sabia e tinha reparado que si eu quizesse, elle ficaria bom lá mesmo. Eu lhe respondi que ficaria tão bom que podia voltar para sua cabana, onde elle então havia de sarar completamente. Com isto, partiu elle com a resposta para Mambukabe, que fica a quatro leguas de Uwattibi, onde eu estava.


[Pg 85]

CAPITULO XXXIV

Como o Jeppipo Wasu voltou doente

Depois de alguns dias, voltaram todos os doentes. Então mandou o rei me conduzir para a sua cabana e me disse como tinham todos ficado doentes e que eu bem o sabia, porque elle se lembrava ainda que eu tinha dito: "A lua estava zangada contra a sua cabana". Quando ouvi estas palavras, pensei commigo: "Aconteceu pela providencia de Deus que eu em a noite referida tivesse falado da lua." Fiquei muito alegre e pensei: "Agora Deus está commigo."

[Pg 86]

Então lhe disse mais que era verdade, por elle querer-me comer e eu não ser seu inimigo, e por isso lhe veiu a desgraça. Elle disse então: que nada me fariam, si elle tornasse a levantar-se. Não sabia como melhor rogar a Deus. Disse commigo: "Si voltam outra vez á saude, matam-me assim mesmo; si morrem, então dirão os outros: "vamos matal-o antes que aconteçam mais desgraças por causa delle", como já começavam a dizer. "Seja como Deus quizer." Elle [o rei] pediu-me muito para que ficassem bons. Andei em roda delles e lhes deitei a mão nas cabeças, como me pediram. Deus porém não o quiz, e começaram a morrer. Morreu-lhes uma creança, depois morreu a mãe do rei, uma mulher velha, a qual queria fazer os potes nos quaes pretendiam fabricar a bebida quando tivessem de me devorar.

Alguns dias depois morreu um irmão do rei, depois mais uma creança, e mais um irmão, que era aquelle que me tinha dado a noticia quando tinham ficado doentes.

Vendo então que seus filhos, sua mãe e irmãos tinham morrido, ficou muito triste, e temendo que elle e mais as mulheres tambem morressem me pediu rogasse a meu Deus que não ficasse mais zangado e o deixasse viver. Eu o consolei como pude e disse que elle nada soffreria, e que não devia pensar em me devorar quando ficasse são. Respondeu-me que não e ordenou aos outros da sua cabana que não fizessem mais zombaria de mim, nem ameaçassem de me devorar. Assim mesmo continuou ainda doente algum tempo, porém ficou outra vez bom e tambem uma de suas mulheres, que estava doente. Mas, morreram mais ou menos oito de sua amizade, os quaes me tinham feito muito mal. Havia ainda dois outros reis em duas cabanas, um, Vratinge Wasu; outro, Kenrimakui[80], ficou bom. Vratinge Wasu tinha sonhado que eu tinha vindo e lhe dissera que elle havia de morrer. De manhã cedo veiu elle ter commigo e se queixou. Eu disse que não, e que não havia perigo; mas que elle tambem não pensasse em me matar, nem que isto aconselhasse. Disse elle então que si aquelles que me tinham capturado não me matassem, elle não me faria mal, e ainda que me matassem, elle não comeria da minha carne.

[Pg 87]

Por sua vez, o outro rei, Kenrimakui, tinha tambem sonhado commigo um sonho que muito o alarmou. Chamou-me á sua cabana, deu-me de comer e, depois, queixou-se a mim dizendo que tinha uma vez estado em guerra, onde capturára um portuguez que elle matou com suas mãos e comeu delle tanto que seu peito ainda doía disso, e não queria comer mais ninguem. E tinha sonhado commigo sonhos tão horriveis que pensava tambem ia morrer. Eu disse-lhe que não havia perigo si não comesse mais carne de gente.

Tambem as mulheres velhas de algumas cabanas, as que muito me tinham maltratado com beliscões, pancadas e ameaças de me devorar, estas mesmas me chamaram então Scheraeire[81], isto é, "meu filho, não me deixes morrer". "Si te tratámos assim, diziam, foi porque pensámos que eras portuguez e este nós detestamos. Temos tambem tido alguns portuguezes, que comemos; mas o Deus delles não ficava tão zangado como o teu; por isso, vemos agora que tu não podes ser portuguez."

Assim, deixaram-me por algum tempo, porque não sabiam bem o que pensar de mim, si eu era portuguez, ou si era francez. Disseram-me que si tinha barba vermelha, como os francezes, tambem tinham visto portuguezes com igual barba, mas elles tinham geralmente barbas pretas.

Depois deste panico, quando um dos meus senhores ficou bom, não falaram mais em me devorar, porém guardaram-me tão bem como dantes e não queriam me deixar andar sózinho.


[Pg 88]

CAPITULO XXXV

Como voltou o francez que tinha recommendado aos selvagens
que me devorassem e eu lhe pedi que me levasse, mas
os meus senhores não queriam me deixar

O tal francez Karwattuware, do qual já falei, que se virou contra mim, como os selvagens que o acompanhavam e eram amigos dos francezes, veiu para arranjar com os indios pimenta e uma especie de pennas[82].

Quando então estava de volta para o logar onde os navios chegam, chamado Mungu Wappe e Iterwenne[83], tinha elle de passar por onde eu estava. Á saída do francez, não duvidei que me iam devorar, como elle o tinha recommendado; e como esteve ausente algum tempo, não podia pensar que eu ainda estivesse vivo.

Chegando outra vez ás cabanas, onde eu estava, falou commigo na lingua dos selvagens; eu me agastei com elle porque me perguntou si eu ainda estava vivo. "Sim, respondi, graças s Deus, que me conservou por tanto tempo." Talvez tivesse elle ouvido dos selvagens como isso aconteceu, e o chamei para um logar onde podiamos falar a sós, para que os selvagens não ouvissem o que eu lhe dizia. Ahi lhe disse que bem podia elle ver que Deus me tinha poupado a vida; como tambem que eu não era portuguez, mas allemão, e por causa do naufragio dos espanhóes tinha chegado á terra dos portuguezes; e pedi que contasse aos selvagens o que eu tinha dito a elle, dissesse-lhes que eu era amigo e parente delle, e que elle me levasse quando chegassem os navios. Porque eu tinha medo de que, si elle[Pg 89] o não fizesse, os selvagens haviam de pensar que havia charlatanismo da minha parte e, uma vez zangados, me matariam.

Fiz-lhe uma admoestação, na lingua dos selvagens, e lhe perguntei si não tinha um coração christão no peito e si não se lembrava que depois desta vida havia uma outra, para elle ter recommendado que me matassem. Começou então a se arrepender e me disse que tinha julgado que eu era portuguez, gente tão má, que quando os indios apanhavam algum nas provincias do Prasil, enforcavam-no logo; o que é verdade. Tambem me disse que elles, os francezes, tinham de respeitar os costumes dos selvagens, e faziam causa commum com elles porque eram inimigos tradicionaes dos portuguezes.

Conforme eu tinha pedido, contou elle aos selvagens que da primeira vez não me conhecera bem, mas que eu era da Allemanha e amigo delles, pelo que queria levar-me comsigo quando chegassem os navios. Mas, os meus senhores responderam-lhe que não, que não me dariam a ninguem, só si viesse meu pae ou meu irmão, com um navio cheio de carga, como machados, espelhos, facas, pentes e tesouras, accrescentando que elles me acharam na terra dos inimigos e eu lhes pertencia.

Quando o francez ouviu isso, disse-me que estava convencido de que elles não me largariam. Pedi-lhe então, por amor de Deus, que me mandasse buscar para me levar á França no primeiro navio que chegasse. Isso me prometteu elle, e disse aos selvagens que me guardassem bem e que não me matassem, porque os meus amigos haviam de vir á minha procura; e se foi embóra.

Tendo partido o francez, perguntou-me um dos meus senhores, chamado Alkindar Miri (não o que estava doente), o que o Karwattuwara (que era o nome do francez, na lingua dos selvagens) me tinha dado e si elle era meu patricio, respondi que sim. "Porque então, dizia elle, não te deu uma faca para tu me dares?" e ficou zangado. Mais tarde, uma vez restabelecidos, começaram de novo a murmurar a meu respeito e diziam que os franceses não valiam mais que os portugueses. Comecei a ter medo de novo.


[Pg 90]

CAPITULO XXXVI

Como devoraram um prisioneiro e me conduziram
a esse espectaculo

Aconteceu que alguns dias depois quiseram devorar um prisioneiro, numa aldeia chamada Tickquarippe[84], cerca de seis milhas de distancia do logar onde me achava captivo. Alguns dos das cabanas, onde eu estava, foram para lá e me levaram tambem. O escravo que elles iam comer era de uma nação chamada Marckaya. Fomos para lá em uma canôa.

Quando chega o momento de se embriagarem, como é seu costume, quando devoram alguma victima, fazem de uma raiz uma bebida que chamam Kawi; bebem-na toda e matam o prisioneiro. Em a noite seguinte, ao beberem á morte do homem, cheguei-me para a victima e lhe perguntei: "Estás prompto para morrer?" Riu-se e me respondeu: "Sim". A corda com que amarram os prisioneiros, mussurana, é de algodão e mais grossa do que um dedo. "Sim, disse elle, estou prompto para tudo". Sómente a mussurana não era bem comprida (faltavam-lhe cerca de seis braças). "Sim, nós temos melhores cordas", disse elle, assim como quem vai a uma feira.

Eu tinha commigo um livro, em lingua portugueza, que os selvagens tiraram de um navio que aprisionaram com o auxilio dos francezes; fizeram-me presente desse livro.

Deixei o prisioneiro e li o livro, e tive muito dó delle. Voltei a ter com elle (porque os portuguezes têm estes markayas por amigos) e lhe disse: "Eu tambem sou prisioneiro como tu e não vim aqui para devorar a tua carne, foram os outros que me trouxeram". Então respondeu que sabia bem que a nossa gente não come carne humana.

Disse-lhe mais que não se affligisse porque, si lhe comiam a carne, sua alma ia para um outro logar, aonde vão tambem as almas[Pg 91] da nossa gente, e ali ha muita alegria. Então perguntou-me si isso era verdade. Eu respondi que sim, e elle me disse que nunca vira a Deus. Respondi que na outra vida havia de vêl-o; e quando acabei de lhe falar, deixei-o.

Na mesma noite em que com elle falei, levantou-se um forte vento, soprando tão horrorosamente que tirava pedaços das cobertas das casas. Os selvagens zangaram-se então commigo, e disseram na sua lingua: "Apomeiren geuppawy wittu wasu Immou[85], isto é, "o maldito, o santo, fez agora vir o vento, porque olhou hoje no couro da trovoada", que era o livro que eu tinha. E eu alegrei-me com isso, porque o escravo era amigo dos portuguezes e eu pensava que o máu tempo impedisse a festa. Orei, então, a Deus e Senhor, dizendo: "Si tu me preservaste até agora, continúa ainda porque estão zangados commigo".


CAPITULO XXXVII

O que aconteceu na volta, depois de terem comido
o prisioneiro

Acabada a festa, voltámos outra vez para as nossas casas e os meus senhores trouxeram comsigo um pouco da carne assada. Gastámos tres dias na volta, viagem que ordinariamente póde ser feita em um; mas ventava e chovia muito. No primeiro dia, á noite, ao fazermos ranchos no matto onde pousamos, disseram-me que eu fizesse acabar a chuva. Comnosco vinha um menino, que trazia uma canella do prisioneiro, e nella havia ainda carne que elle comia. Eu disse ao menino que deitasse fóra o osso. Zangaram-se então todos commigo e me disseram que isto é que era a sua verdadeira comida. Levámos tres dias em caminho.

[Pg 92]

Já á distancia de um quarto de milha das nossas casas, não pudemos mais avançar, porque as ondas cresceram muito. Arrastámos as canôas para terra, pensando que no dia seguinte faria bom tempo e poderiamos levar a canôa para a casa; mas a tempestade continuava. Pensámos então em ir por terra e voltar a buscar a canôa quando fizesse bom tempo. Antes, porém, de sairmos, elles e o menino comeram a carne do osso e depois o deitaram fóra. Fomos por terra e, com pouco, o tempo ficou bom. "Ora muito bem", disse eu, "não me querieis acreditar quando eu disse que o meu Deus estava zangado, porque o menino estava a comer a carne do osso."—"Sim", responderam-me; mas "si elle a tivesse comido sem eu ver, o tempo teria continuado bom." E nisto ficámos.

De regresso outra vez ás cabanas, um dos que tinham parte em mim, chamado Alkindar, perguntou-me si eu agora tinha visto como tratavam aos seus inimigos; respondi que me parecia horroroso que elles os devorassem; o facto de os matarem não era tão horrivel. "Sim, disse elle, é o nosso costume, e assim fazemos com os portuguezes tambem".

Esse Alkindar me era muito adverso e estimaria bem que me tivesse morto aquelle a quem me tinha dado, porque, como já deveis ter lido, Ipperu Wasu lhe tinha dado um escravo para matar com o fim de elle ganhar mais um nome. Então Alkindar lhe promettêra, por sua vez, fazer-lhe presente do primeiro inimigo que elle capturasse. Mas, como isso não se dera commigo, elle de bom grado o teria feito; porém o irmão lho impedia, por medo de que lhe acontecesse alguma desgraça.

Por isso, este mesmo Alkindar, antes que os outros me tivessem levado ao logar onde tinham devorado aquelle outro, me tinha ameaçado de morte. Mas, voltando agora, e na minha ausencia, tinha elle ficado com dôr de olhos, que o obrigou a ficar em repouso e não enxergar por algum tempo; disse-me que eu falasse a meu Deus para que os seus olhos sarassem. Eu disse que sim, mas que elle depois não fosse máu para commigo. Disse-me elle que não. Alguns dias depois, estava restabelecido.

Quando o dia nasceu, tornou-se bonito o tempo, e elles beberam[Pg 93] e alegraram-se muito. Então fui ter com o prisioneiro e disse-lhe: "O vento forte era o proprio Deus". No dia seguinte, comeram-no. O que se seguiu, vereis no capitulo seguinte.


CAPITULO XXXVIII

Como outra vez um navio foi mandado pelos portuguezes
á minha procura

Já no quinto mez da minha estada entre elles, chegou outra vez um navio da ilha de S. Vincente. Os portuguezes têm o costume de ir á terra dos seus inimigos, porém bem armados, a negociarem com elles. Dão-lhes facas e anzóes, por farinha de mandioca que os selvagens têm em muitos logares, e de que os portuguezes, com muitos escravos para as suas plantações de canna, precisam para o sustento dos mesmos[86]. Chegado o navio, vão os selvagens, reunidos ou a dois, nas canôas e entregam a mercadoria na maior distancia possivel. Depois, dizem o preço que querem por ella, o que os portuguezes lhes dão; mas, emquanto os dois ficam ao pé do navio, estão á espera, ao longe, canôas cheias de gente, e, uma vez acabados os negocios, investem muitas vezes e combatem com os portuguezes, arremessando-lhes flechas, e retirando-se em seguida.

Disparou o barco referido um tiro de peça, para que os selvagens soubessem que elle ali estava. Aproximaram delle. De bordo perguntaram por mim e si eu ainda estava vivo. Responderam[Pg 94] que sim. Então pediram os portuguezes para me ver, porque tinham um caixão cheio de mercadorias, que meu irmão, tambem francez, tinha mandado e estava com elles no barco.

No navio, com os portuguezes, estava um francez, de nome Claudio Mirando, que antes tinha sido meu camarada; a este chamei-lhe "meu irmão", pois que suppunha estivesse a bordo e perguntasse por mim, visto já ter feito essa viagem.

Voltaram do navio para a terra e me disseram que meu irmão tinha vindo, mais uma vez, com um caixão cheio de mercadorias, e queria muito me ver. Eu lhes disse então: "Levae-me para lá, mas de longe,[Pg 95] pois quero falar com meu irmão; os portuguezes não nos entendem; quero lhe pedir que conte ao nosso pai, quando chegar a casa, e lhe peça que venha com muitas mercadorias para me buscar." Acharam que era bom assim, mas tinham medo de que os portuguezes nos entendessem, pois que estavam preparando uma grande guerra que queriam declarar para o mez de agosto, na vizinhança de Brickioka, onde fui capturado. Eu sabia bem de todos os seus planos e por isso tinham medo de que eu falasse sózinho com elles [os portuguezes]. Mas eu disse que não havia perigo, porque os portuguezes não comprehendiam a lingua de meu irmão e a minha. Levaram-me então até cerca de um tiro de funda do navio e todo nú, como eu sempre andava entre elles. Chamei então os de bordo e lhes disse: "Deus e Senhor seja comvosco, queridos irmãos. Que um só fale commigo e não deixe perceber que eu não sou francez." Então um chamado Johann Senchez, Boschkeyer [Biscayo], que eu bem conhecia, me disse: "Meu querido irmão, é por vossa causa que cá viemos com o barco, não sabendo si estaveis vivo ou morto, pois que o primeiro barco não nos deu noticias vossas. Agora o Capitão Brascupas [Braz Cubas] em Sanctus [Santos] ordenou que deligenciassemos por saber si ainda estaveis vivo, e, quando o soubessemos, que procurassemos ver si elles vos queriam vender; sinão, que tentassemos capturar alguns para trocar por vós."

Respondi então: "Que Deus vos recompense eternamente, pois estou com muito receio, sem saber quaes as intenções desta gente; já me teriam devorado, si Deus não o tivesse impedido milagrosamente". Continuei, dizendo que elles não me venderiam; que não deixasse perceber que eu não era francez e, por amor de Deus me désse algumas mercadorias, facas e anzóes. Fez-se isto e um indio foi então ao barco, em canôa, buscal-os.

Visto que os selvagens não me queriam deixar conversar por mais tempo, disse eu aos portuguezes que se acautelassem bem, pois que cá se aprestavam para os atacar de novo na Brickioka. Responderam-me que os indios seus alliados tambem se preparavam e queriam atacar a aldeia, exactamente aquella onde eu estava, e que eu tivesse coragem porque Deus havia de levar tudo pelo melhor, pois, do contrario, como eu via, elles não podiam me auxiliar. "Sim,[Pg 96] disse eu; porque é melhor que Deus me castigue nesta vida do que na outra e rogae a Deus que me ajude a sair desta miseria."

Com isso me recommendei a Deus, o Senhor. Queriam falar ainda commigo; mas os selvagens não me consentiram ter mais conversa com elles e tornaram a levar-me para as cabanas.

Tomei então as facas e os anzóes e os distribui entre elles e lhes disse: "Tudo isto, meu irmão, o francez, me deu". Perguntaram-me o que tinha meu irmão conversado commigo. Respondi "que tinha aconselhado a meu irmão de procurar escapar dos portuguezes e voltar para a nossa terra, e que de lá trouxesse embarcações com muitas mercadorias para mim, pois que sois bons e me tratais bem; o que desejo recompensar quando voltar o barco." Assim, tinha eu sempre o que pretextar, o que muito lhes agradou.

Depois disso, começaram a dizer entre si: "Elle, de certo, é francez; vamos, pois, tratal-o agora melhor". Eu continuei a dizer-lhes sempre: "Não ha de demorar a vinda de um navio a buscar-me". Isto para que elles me tratassem bem. Dahi em diante, levavam-me, ás vezes, ao matto, onde havia o que fazer e me obrigavam a ajudal-os.


CAPITULO XXXIX

Como elles tinham um prisioneiro que sempre me calumniava
e que estimaria que me matassem, e como o mesmo
foi morto e devorado as minha presença

Havia entre elles um prisioneiro da nação que se chama Cariós, inimigos dos selvagens, mas amigos dos portuguezes. O mesmo tinha pertencido aos portuguezes, de quem tinha fugido. Aos que assim vêm a elles, não os matam, sinão quando comettem algum crime grave; conservam-n'os como propriedade sua e os obrigam a servir.

Este Carió tinha estado tres annos entre os Tuppin Inbá e[Pg 97] contou que me tinha visto entre os portuguezes e que eu tinha atirado por vezes contra os Tuppin Inbás, quando iam á guerra.

Havia já annos que os portuguezes lhes tinham morto a tiro um dos maioraes e esse maioral, dizia o Carió, tinha sido eu que o atirara. E os instigava sempre, para que me matassem, porque eu era o inimigo verdadeiro; elle o tinha visto. Mentia, porém, em tudo isso, porquanto havia já tres annos que estava entre elles e havia apenas um anno que eu tinha chegado a S. Vincente, de onde elle tinha fugido. Orei a Deus para que me guardasse contra essas mentiras. Aconteceu então, no anno 1554, mais ou menos, no sexto mez depois que fiquei prisioneiro, cair doente o Carió, e o senhor delle me pediu então que eu o tratasse para que ficasse bom e pudesse caçar, para termos o que comer, pois que eu bem sabia que quando elle trazia alguma coisa tambem me dava a mim. Como, porém, me pareceu que elle não mais se curaria, desejava elle [o senhor] dal-o a um amigo para que o matasse e ganhasse mais nome.

Assim, estava elle doente, havia já uns nove ou dez dias. Guardam estes selvagens os dentes de um animal a que chamam Backe [pacca]; amolam estes dentes, e, onde quer que o sangue estanque, fazem com um destes dentes uma incisão na pelle, e o sangue corre em tanta quantidade como quando aqui se corta a cabeça a alguem.

Tomei então um destes dentes a ver si ao paciente lhe abria uma veia mediana. Mas nada consegui porque o dente estava muito cego. Rodeavam-me todos. Como, porém, me retirei vendo que nada valia, perguntaram-me si o doente ficava bom outra vez? Disse-lhes que nada tinha conseguido, pois o sangue não corria, como podiam ter visto. "Sim, replicaram; elle quer morrer, vamos pois matal-o, antes que morra."

Disse-lhes eu então: "Não, não o matem; talvez possa sarar ainda." Mas de nada valeu o dizer. Levaram-no para frente da cabana do maioral Vratinge [Uiratinga] com dois a sustental-o, pois que já estava tão desacordado que não percebia mais o que faziam com elle. Aproximou-se-lhe então aquelle a quem tinha sido dado para matal-o e lhe deu tão grande golpe na cabeça que os[Pg 98] miolos lhe saltaram. Deixaram-no assim diante da cabana e iam comel-o. Disse-lhes eu então que não o fizessem, porque era um homem doente e podiam elles adoecer tambem. Ficaram sem saber o que fazer. Saiu então um delles da cabana onde eu morava, chamou as mulheres para que fizessem um fogo ao pé do morto e lhe cortou a cabeça, porque tinha um só olho e parecia tão feio da doença, que elle deitou fóra a cabeça e esfolou o corpo sobre o fogo. Depois o esquartejou e dividiu com os outros, como é de seu costume, e o devoraram, excepto a cabeça e os intestinos, que lhes repugnavam, porque elle tinha estado doente.

[Pg 99]

Fui de uma para outra cabana. Em uma assaram os pés, em outra, as mãos; e na terceira, pedaços do corpo. Disse-lhes então como o Carió, que elles estavam assando e queriam devorar, me tinha sempre calumniado e dito que eu é que tinha morto alguns dos seus amigos, quando estive entre os portuguezes; o que era mentira, pois que elle nunca lá me tinha visto. "Sabeis que elle esteve entre vós alguns annos e nunca esteve doente; agora, porém, quando deu de mentir a meu respeito, meu Deus se irritou e o fez adoecer e metteu em vossas cabeças que o matasseis e o devorasseis. Assim é que meu Deus hade fazer com quantos malvados me têm feito mal, ou me fazem". Atemorisaram-se com estas palavras e isso agradeço a Deus todo poderoso, que, em tudo, se mostrou tão forte e misericordioso para commigo.

Peço, por isso, ao leitor, que preste attenção ao meu escripto, não que tome eu este trabalho pelo vão desejo de escrever novidades; mas tão sómente para mostrar o beneficio de Deus.

Aproximou-se o tempo da guerra que durante 3 meses elles vinham preparando. Sempre esperei que, quando saíssem, me deixassem em casa com as mulheres, pois queria ver si, emquanto estivessem ausentes, podia eu fugir.


CAPITULO XL

Como um navio francez chegou para negociar com os selvagens
algodão e páu prasil, para o qual navio eu queria, ir,
mas Deus não permittiu

Cerca de oito dias antes da partida para a guerra, um navio francez tinha surgido a oito milhas dali, em um porto que os portuguezes chamam Rio de Jenero e, na lingua dos selvagens, Iteronne[87] [Niteroy]. Ali costumam os francezes carregar páu[Pg 100] prasil. Chegaram tambem á aldeia, onde eu estava, com o seu bote, e trocaram com os selvagens pimenta, macacos e papagaios[88]. Um dos que estavam no bote saltou em terra. Sabia a lingua dos selvagens e se chamava Jacob. Negociou com elles e eu lhe pedi que me levasse para bordo. Mas meu senhor disse que não, pois não me deixaria ir assim, sem lhe darem mercadorias por mim. Pedi-lhes então que me levassem elles mesmos a bordo; meus amigos lá lhes dariam então mercadorias bastantes. Replicaram que estes não eram os meus verdadeiros amigos.

[Pg 101]

"Porque é então que estes chegados no bote não te déram uma camisa, apesar de tu andares nú? É que não fazem caso de ti" (como de facto era). Mas respondi: "Si eu fosse ao barco grande, elles me vestiriam." Disseram-me então que o navio não sairía tão cedo, primeiro tinham de ir á guerra, e quando voltassem é que haviam de me levar ao navio. O bote queria pois voltar, visto já estar ausente do navio uma noite. Quando então vi que o bote se ia embora outra vez, pensei: "Ó Deus bondoso, si o navio sair agora e não me levar comsigo, tenho de perecer entre esta gente, porque não são de confiança." Com este pensamento, saí da cabana e me dirigi para a agua; quando isto viram, correram atráz de mim. Eu corri na frente e elles queriam-me agarrar. Ao primeiro que se chegou a mim bati até me largar e toda a aldeia estava atráz de mim; assim mesmo escapei delles e nadei para o bote. Quando já estava a entrar no bote, os francezes não me consentiram e me disseram que si me levassem contra a vontade dos selvagens, estes se levantariam tambem contra elles e se tornariam seus inimigos. Voltei então triste, nadando para a terra, e disse commigo: "Vejo que é da vontade de Deus continue eu ainda na desgraça. Mas si eu não tivesse procurado escapar, teria pensado depois que era isso por minha culpa."

Quando tornei á terra, ficaram alegres e disseram: "Não, elle volta." Fiquei então zangado e lhes disse: "Pensaveis que eu queria fugir? Eu fui ao bote dizer aos meus patricios que se preparassem para, quando voltardes da guerra, e me levardes para lá, vos dêem, em troca, muitas mercadorias." Isto lhes agradou e ficaram outra vez contentes.


[Pg 102]

CAPITULO XLI

Como os selvagens foram para a guerra e me levaram
e o que aconteceu nesta viagem

Quatro dias depois reuniram-se algumas canôas que queriam ir para a guerra, na aldeia onde eu estava. Ahi chegou o chefe Konyan Bébe, com os seus. Disse-me então o meu senhor que me queria levar. Pedi-lhe que me deixasse em casa. E elle talvez o tivesse feito; mas Konyan Bebe disse que me levassem. Não deixei transparecer que ia contrariado, para que pensassem que ia de bom grado e que eu não desejava fugir uma vez na terra do inimigo e tivessem assim menos cautella commigo. Era, com effeito, minha intenção, si me tivessem deixado em casa, fugir para o navio francez.

Mas levaram-me. Tinham uma força de 38 canôas e cada canôa tripolada com 18 [homens] mais ou menos[89], e alguns delles tinham tirado bons augurios da guerra, consultando os seus idolos em sonhos e outras superstições, como é seu costume, de modo que estavam bem dispostos. Sua intensão era dirigirem-se á vizinhança de Brickioka, onde me capturaram, e, escondendo-se nas mattas dos arredores, aprisionar todos que lhes caíssem nas mãos.

Ao partirmos para a guerra, era o anno de 1554, cerca de 14 de agosto. Neste mez (como já foi referido aqui) uma especie de peixe, chamado em portuguez doynges [tainha], em espanhol, liesses, e na lingua dos selvagens bratti [paratí], sae do mar para as aguas doces, a desovar. Os selvagens chamam a isso Zeitpirakaen[90]. Neste tempo costumam todos ir á guerra, tanto seus inimigos como elles proprios, a apanharem peixes na viagem e comerem.[Pg 103] Na ída, vão muito de vagar; mas na volta, com a maior pressa que pódem.

Eu esperava sempre que os alliados dos portuguezes tambem estivessem em viagem, pois que estavam tambem promptos para invadirem a terra dos outros, como antes me tinham dito no barco os portuguezes.

Durante a viagem perguntaram-me sempre o meu palpite, si haviam de aprisionar alguem. Para os não zangar, disse que sim; tambem disse que os inimigos nos haviam de encontrar. Uma noite, quando estavamos num logar da costa chamado Uwattibi, apanhámos muitos dos peixes bratti, que são do tamanho de um lucio; ventava muito de noite. Conversavam muito commigo querendo saber[Pg 104] de muita coisa. Disse-lhes eu então que este vento estava passando sobre muitos mortos. Uma porção de selvagens encontravam-se tambem no mar, tendo entrado num rio chamado Paraíbe[91]. "Sim, disseram, estes atacaram os inimigos em terra e muitos delles morreram" (como mais tarde se soube que tinha acontecido).

Quando chegámos á distancia de um dia de viagem do logar onde queriam executar o seu plano, arrancharam-se na matta, numa ilha que os portuguezes chamam de S. Sebastian, mas que os selvagens denominam Meyenbipe[92].

[Pg 105]

Á noite, o chefe Konyan Bébe, a chamado, passou pelo acampamento na matta, e disse que eram chegados agora perto da terra dos inimigos, e todos se lembrassem do sonho que acaso tivessem durante a noite, e que procurassem ter sonhos felizes. Acabada a arenga, começaram a dançar em honra de seus idolos até alta noite e foram depois dormir. O meu senhor ao deitar-se recommendou-me que procurasse ter um bom sonho. Respondi-lhe que não me importava com sonhos, que são sempre falsos. "Então, insistiu elle, roga assim mesmo a teu Deus, para que aprisionemos inimigos."

Ao raiar do dia reuniram-se os chefes ao redor de uma panella de peixe frito, que comeram, contando os sonhos que mais lhes agradaram. Alguns dançaram em homenagem aos seus idolos, e quizeram neste mesmo dia ir á terra dos seus inimigos, a um logar chamado Boywassukange [Boisucanga], esperando ahi até que anoitecesse.

Ao deixarmos o logar onde tinhamos pernoitado, chamado Meyenbipe, perguntaram-me de novo o que eu pensava. Disse então, ao acaso, que em Boywassukange haviamos de encontrar os inimigos, e que tivessem coragem. E era minha intenção fugir delles no mesmo logar Boywassukange, logo que chegassemos, porque de lá até onde me tinham capturado havia sómente 6 leguas.

Quando perlongavamos a terra, avistámos, por detráz de uma ilha, umas canôas que se dirigiam a nós. Gritaram então: "Ahi vêm os nossos inimigos, os Tuppin Ikins". Quizeram ainda assim esconder-se com as suas canôas por detráz de um rochedo, para que os outros passasem sem os ver. Mas foi debalde, viram-nos e fugiram para a sua terra. Remámos com toda a força atrás delles, talvez umas quatro horas, e os alcançámos. Eram cinco canôas cheias, todas de Brickioka. Conheci-os a todos. Tinham seis mamelucos em uma dessas canôas e dois eram irmãos. Chamava-se um Diego de Praga [Braga], e o outro Domingos de Praga [Braga]. Defenderam-se estes valentemente, um, com um tubo [espingarda], e o outro com um arco. Resistiram na sua canôa, durante duas horas, a trinta e tantas canôas nossas. Acabadas as suas flechas, os Tuppin[Pg 106] Inba os atacaram e os aprisionaram, e alguns foram logo mortos a tiro. Os dois irmãos não saíram feridos, mas dois dos seis mamelucos ficaram muito maltratados, bem como alguns dos Tuppin Ikin, entre os quaes havia uma mulher.


CAPITULO XLII

Como, na volta, trataram os prisioneiros

Foi no mar, a duas boas leguas distante de terra, que foram capturados. Voltaram o mais de pressa possivel para terra a pernoitarem outra vez no mesmo logar, onde já tinham estado. Chegámos a Meyenbipe á tarde, quando o sol estava entrando. Levaram então os prisioneiros, cada um, para sua cabana; mas a muitos feridos desembarcaram e os mataram logo, cortaram-n'os em pedaços e assaram a carne. Entre os que foram assados de noite, havia dois mamelucos que eram christãos. Um era portuguez, filho de um capitão e se chamava George Ferrero [Jorge Ferreira] cuja mãe era india.

O outro chamava-se Hieronymus; este ficou prisioneiro de um selvagem morador na mesma cabana em que eu estava e cujo nome era Parwaa[93]. Assou a Hieronymus de noite, mais ou menos á distancia de um passo do logar onde eu estava deitado. Esse Hieronymus (Deus tenha a sua alma!) era parente consanguineo de Diego Praga [Diogo Braga].

Nesta mesma noite, quando já acampados, fui á cabana em que guardavam os dois irmãos, para conversar com elles, pois tinham sido bons amigos meus em Brickioka, onde fui preso. Então perguntaram-me se teriam de ser devorados; respondi que isso entregassem á vontade do Pae Celeste e de seu amado filho Jesus Christo, o crucificado por nossos peccados, em cujo nome eramos baptizados até a nossa morte. "Nelle, disse eu, tenham fé, pois Elle é[Pg 107] que me tem conservado tanto tempo entre os selvagens e o que Deus todo poderoso fizer comnosco, com isso devemos nos conformar."

Perguntaram-me então os dois irmãos como ia o primo delles, Hieronymus; disse-lhes que fôra elle assado ao fogo e que eu tinha visto já comerem um pedaço do filho de Ferrero. Choraram então. Consolei-os e disse que, de certo, sabiam que eu aqui estava havia já cerca de 8 mezes e que Deus me tinha conservado. "Fará elle o mesmo comvosco tambem; confiem nelle, disse eu. Sinto isso mais do que vós, porque sou de uma terra extranha e não estou acostumado aos horrores desta gente; mas vós nascestes aqui e aqui fostes criados".—Responderam que eu tinha o coração[Pg 108] endurecido por causa da minha propria desgraça e por isso os não extranhava mais.

Estando assim a falar-lhes, chamaram-me os selvagens para minha cabana e me perguntaram que conversa cumprida tinha eu tido com elles.

Senti muito ter de os deixar e lhes disse que se entregassem á vontade de Deus, e fossem vendo que miserias havia neste valle de lagrimas. Responderam-me que nunca tinham experimentado isso tanto como agora, e que se sentiam mais animados por eu estar em companhia delles. Saí então da sua cabana e atravessei todo o acampamento, a ver os prisioneiros. Andei assim sózinho e ninguem me guardava, de modo que, desta vez, podia bem ter fugido, pois que estavamos numa ilha, Meyenbipe chamada, cerca de 10 leguas de caminho de Brikioka; mas deixei de o fazer por causa dos christãos presos, dos quaes ainda havia quatro vivos. Assim, reflecti eu: "Si eu fugir, ficam zangados e os matam logo; talvez até Deus nos preserve a todos." E assentei de ficar com elles para consolal-os, como realmente fiz. Ademais, os selvagens estavam muito contentes commigo, porque eu antes lhes annunciara, por acaso, que os inimigos viriam ao nosso encontro. E porque eu tinha adivinhado isso, disseram que eu era melhor propheta do que o maraka[94] delles.


[Pg 109]

CAPITULO XLIII

Como dançavam com os seus inimigos, quando pernoitamos,
no dia seguinte

No dia seguinte, estavamos não longe da sua terra, ao pé de uma grande montanha, denominada Occarasu[95]. Ahi acamparam para passar a noite. Fui então á cabana do chefe principal (Konian Bebe chamado) e lhe perguntei o que tencionava fazer dos mammelucos. Disse-me que seriam devorados e me prohibiu de lhes falar, pois que estava muito zangado com elles; deviam ter ficado em casa e não irem com seus inimigos em guerra contra elle. Pedi-lhe que os deixasse viver e os vendesse aos seus amigos, outra vez. Tornou a dizer-me que seriam devorados.

E esse mesmo Konian Bebe tinha uma grande cesta cheia de carne humana diante de si e estava a comer uma perna, que elle fez chegar perto da minha bocca, perguntando si eu tambem queria comer. Respondi que sómente um animal irracional devora a outro, como podia então um homem devorar a outro homem? Cravou então os dentes na carne e disse: "Jau ware sche[96]" que quer dizer: "Sou uma onça", está gostoso!" Com isto, retirei-me de sua presença.

Esta mesma noite, ordenou elle que cada um levasse os seus prisioneiros para adiante do matto, ao pé da agua, num logar limpo. Isto feito, reuniram-se, formando um grande circulo e dentro ficaram os prisioneiros. Obrigaram a todos estes a cantarem e chocalharem os idolos Tammaraka. Mal os prisioneiros acabaram o canto, começaram, um após outro, a falar com arrogancia: "Sim, saímos como costuma sair gente brava, para aprender a comer os[Pg 110] nossos inimigos. Agora vós vencestes e nos aprisionastes, mas não fazemos caso disso! Os valentes morrem na terra dos inimigos; a nossa é ainda grande; os nossos nos hão de vingar em vós".—"Sim, responderam os outros, vós já acabastes a muitos dos nossos, por isso queremos nos vingar de vós."

Acabada esta disputa, levou cada um seu prisioneiro, outra vez, para o alojamento.

Tres dias depois, partimos novamente para a terra delles; cada qual levou o seu prisioneiro para a sua casa. Os que eram de Uwattibi, onde eu estava, tinham captarado oito selvagens vivos e tres[Pg 111] mammelucos que eram christãos, a saber: Diego e seu irmão, e mais um christão chamado Antonio; este tinha tido aprisionado pelo filho do meu senhor. Dois mammelucos mais que eram christãos, levaram-n'os assados para a casa, para lá os devorar. Tinhamos levado onze dias sa viagem, ida e volta.


CAPITULO XLIV

Como o navio francez ainda lá estava, para o qual me tinham
promettido levar quando voltassem da guerra, etc.,
como ficou referido

Chegados outra vez a casa, pedi-lhes que me levassem para o navio francez, pois já tinha estado na guerra com elles e os tinha ajudado a capturar os seus inimigos, aos quaes já deviam ter ouvido que eu não era nenhum portuguez.

Disseram-me que sim, que iam levar-me; mas queriam primeiro descançar e comer o mokaen [moquem], isto é, a carne assada dos dois christãos.


CAPITULO XLV

Como foi que comeram assado o primeiro dos dois christãos,
a saber: Jorge Ferrero, o filho do capitão portuguez

Havia um principal numa das cabanas, em frente da em que eu estava. Chamava-se elle Tatamiri[97], e foi quem forneceu o assado e mandou fazer as bebidas, como era o costume delles. Reuniram-se então muitos para beber, cantar e folgar. No dia[Pg 112] seguinte, depois de muito beberem, aqueceram outra vez a carne assada e a comeram. Mas a carne de Hieronymus estava ainda dentro de uma cesta, pendurada ao fumeiro, na cabana onde eu estava, havia mais de tres semanas; estava tão secca como um páu por ter estado tanto tempo ao fumeiro sem que a comessem. O selvagem, que a possuia, chamava-se Parwaa. Tinha ido algures buscar raizes para fazer a bebida que havia de servir por occasião de se comer a carne de Hieronymus. Assim se passava o tempo e não queriam levar-me para o navio antes de passada a festa de Hieronymus e de acabarem de comer-lhe a carne. Emquanto isso, foi-se embóra outra vez o navio francez, sem que eu o soubesse, pois havia mais ou menos oito milhas de distancia do logar onde eu estava.

Ao ter esta noticia fiquei muito triste; mas os selvagens me diziam que era costume geralmente voltar o navio todos os annos[98], com o que tive de me contentar.


CAPITULO XLVI

Como Deus Todo Poderoso me deu uma prova

Tinha eu feito uma cruz de um páu ôco e a tinha levantado em frente da cabana, onde morava. Muitas vezes ahi fiz a minha oração ao Senhor e tinha recommendado aos selvagens de a não arrancar, porque havia de acontecer alguma desgraça; desprezaram, porém, as minhas palavras. Certa vez, em que eu estava com elles a pescar, uma mulher arrancou a cruz e a deu a seu marido para, na madeira que era roliça, polir uma especie de collar que fazem de conchas marinhas. Isto me contrariou. Logo depois começou a chover muito e a chuva durou alguns dias. Vieram então á minha cabana e me pediram que implorasse a meu Deus para[Pg 113] que cessasse a chuva, pois que, se não cessasse, impediria a plantação, visto ser já tempo de plantarem. Disse-lhes que a culpa era delles, pois tinham offendido a meu Deus, arrancando o madeiro; e era ao pé deste que eu costumava falar com elle. Como acreditassem ser esta a causa da chuva, ajudou-me o filho do meu senhor a levantar, de novo, a cruz. Era mais ou menos uma hora da tarde, calculada pelo sol. Tanto que a cruz se ergueu, ficou immediatamente bom o tempo, que tinha estado muito tempestuoso até ali. Admiraram-se todos, acreditando que o meu Deus fazia tudo o que eu queria.

[Pg 114]


CAPITULO XLVII

Como uma noite fui pescar com dois selvagens e Deus fez
um milagre por causa de uma chuva e tempestade

Estava eu com um dos mais nobres dentre elles, chamado Parwaa, o mesmo que tinha assado a Hieronymus. Elle, eu e mais outro pescavamos. Ao escurecer levantou-se uma chuva com trovoada, não longe de nós e o vento tangia a chuva para o nosso lado. Pediram-me então os dois selvagens, que eu rogasse a meu[Pg 115] Deus que impedisse a chuva, porque assim talvez apanhassemos mais peixe. Eu sabia que nas cabanas nada mais tinhamos para comer. As suas palavras me commoveram e pedi a Deus, do fundo do meu coração, que quizesse mostrar o seu poder, não só por terem os selvagens pedido como para que vissem que tu, oh! meu Deus, estavas sempre commigo. Tanto que acabei de orar, soprou o vento com violencia, trazendo a chuva, até mais ou menos uns seis passos de nós e nem démos por isso. Disse então o selvagem Parwaa: "Agora estou certo de que falaste com o teu Deus." E apanhámos alguns peixes.

Quando tornámos ás cabanas, contaram os dois selvagens aos outros que eu havia falado com o meu Deus e que coisas tinham acontecido. Foi admiração para todos.


CAPITULO XLVIII

Como foi que comeram assado o outro christão
chamado Hieronymus

Logo que o selvagem Parwaa teve tudo prompto, como já disse, mandou fazer as bebidas para quando comessem a Hieronymus. Acabado isto, foram buscar os dois irmãos e mais um, que o filho do meu senhor tinha capturado, chamado Antonius. Quando nós quatro christãos nos ajuntámos, obrigaram-nos a beber com elles; antes porém de bebermos, fizemos a nossa oração a Deus para que salvasse as nossas almas e a nós tambem quando chegasse a nossa hora. Os indios conversavam comnosco e se mostravam alegres; nós, porém, só viamos desgraças! No dia seguinte de manhã, aqueceram de novo a carne, comeram e acabaram logo com ella. Nesse mesmo dia, levaram-me para fazer presente de mim. Ao separar-me dos dois irmãos, pediram-me elles que orasse a Deus por elles; e eu lhes ensinei o meio de fugirem, o logar para onde deviam dirigir-se na serra sem serem perseguidos, pois que os já tinha explorado a serra. Isto fizeram, ficaram livres a se escaparam, como soube depois; mas ignoro si foram apanhados outra vez.


[Pg 116]

CAPITULO XLIX

Como foi que me levaram para fazer presente de mim

Levaram-me para o logar onde me queriam dar de presente; a caminho, num ponto chamado Tackwara sutibi[99], quando já estavamos a certa distancia, voltei-me para as cabanas de onde tinhamos sahido e vi que havia uma nuvem negra sobre ellas. Apontei para a nuvem e disse que o meu Deus estava irritado com a aldeia porque tinham comido carne de gente. E, uma vez chegados, entregaram-me a um principal de nome Abbati Bossange[100]. A este disseram que me não fizesse mal, nem o deixasse fazer, porque o meu Deus era terrivel quando me maltratavam. E elles o tinham experimentado quando ainda estava eu entre elles; por minha vez, tambem o exhortei e lhe disse que não demoraria, haviam de vir meu irmão e meus parentes com um navio carregado de mercadorias e, si me tratassem bem, eu havia de lhe dar muitos presentes, pois eu sabia que Deus faria chegar sem demora o navio do meu irmão. Isto muito o alegrou. O principal chamou-me "seu filho" e fui á caça com os delle.


CAPITULO L

Como os selvagens daquelle logar contaram que o navio
francez tinha-se feito á vela de novo

Contaram-me como o navio anterior, Maria Bellete chamado, de Depen [Dieppe], com o qual eu tanto queria partir, ali recebera carga completa, a saber: páu prasil, pimenta, algodão, pennas, macacos, papagaios e muitas outras coisas, que não tinham[Pg 117] encontrado em outra parte. No porto do Rio de Jenero[101] tinham aprisionado um navio portuguez e dado um portuguez a um principal dos selvagens, chamado Itawu, que o tinha devorado. Tambem aquelle francez que, quando caí prisioneiro, tinha recommendado que me comessem, estava a bordo do navio e queria voltar para sua terra. O navio dos francezes, como já contei, daquelles mesmos que não me quizeram recolher quando fugi para o bote delles, tinha naufragado na volta[102], e quando voltei para a França em outro navio, ninguem sabia ainda onde elle parava, como direi mais tarde.


CAPITULO LI

Como, logo depois de terem feito presente de mim, um outro
navio chegou de França, chamado "Katharina de
Vattauilla", o qual, por providencia de Deus,
me comprou e como isso aconteceu

Depois de mais ou menos quatorze dias de permanencia no logar Tackwara sutibi [Taquaruçutyba], em casa de Abbati Bossange, aconteceu virem a mim uns selvagens a me dizerem que tinham ouvido tiros, para os lados de Iteronne, cujo porto tambem chamam Rio de Jennero. Como julguei que, de facto, um navio lá estava, pedi-lhes que me levassem para lá, porque era, de certo, o meu irmão. Disseram-me que sim, porém me detiveram ainda por alguns dias.

Foi o tempo que os francezes recem-chegados souberam que eu estava entre os selvagens. O capitão mandou dois homens de bordo, em companhia de seis dos selvagens, seus amigos no logar, os quaes[Pg 118] chegaram á cabana do principal chamado Sowarasu[103], perto daquellas onde eu estava. Os selvagens me vieram dizer que duas pessoas desembarcadas do navio ali estavam. Fiquei contente e fui ter com ellas e lhes dei as boas vindas, na lingua dos selvagens. Vendo-me em tão misero estado, tiveram pena de mim e repartiram as suas roupas commigo. Perguntei-lhes a que tinham vindo. Responderam que por minha causa; tinham recebido ordem de me levar para bordo e estavam dispostos a usar de todos os meios para isso. Então meu coração se alegrou reconhecendo a clemencia de Deus. E eu disse a um dos dois, que se chamava Perot e sabia a lingua dos selvagens, que elle devia declarar que era meu irmão e tinha trazido para mim uns caixões, cheios de mercadorias, e que elles me levassem a bordo para buscar os caixões; e que accrescentasse que eu desejava ficar ainda com elles para colher pimentas e outras coisas mais, até que o navio voltasse no anno seguinte. Depois desta conversa, levaram me para o navio, e meu senhor tambem foi commigo. A bordo todos tiveram pena de mim e me trataram muito bem. Depois de estarmos uns cinco dias a bordo, perguntou-me o principal dos selvagens, Abbati Bossange, a quem eu tinha sido dado, onde estavam os caixões, para me darem e podermos logo voltar para terra. Contei isso mesmo ao commandante do navio. Este me ordenou que eu os fosse entretendo até que o navio estivesse com toda a carga, para que se não zangassem ou fizessem algum mal ao verificarem que me retinham no navio, ou não tramassem qualquer traição; tanto mais quanto tal gente não é de confiança. Meu senhor, porém, insistiu em levar-me comsigo para a terra. Eu, porém, o entretive com a minha prosa e lhe disse que não tivesse tanta pressa; que elle bem sabia que, quando bons amigos se reúnem, não podem separar-se tão cedo; mas logo que o navio tivesse de partir, haviamos de voltar para a sua casa; e assim o detive. Finalmente, quando o navio esteve prestes de partir, reuniram-se os francezes todos do navio; eu estava com elles e o meu senhor, o principal, com os que tinha levado, tambem lá estava. O capitão do barco mandou então o seu interprete dizer aos selvagens que elle estava[Pg 119] satisfeito de me não terem morto, depois de me terem tirado do poder de seus inimigos. Mandou dizer mais (para com mais facilidade me livrar delles) que tinha mandado chamar-me a bordo, porque queria lhes dar alguns presentes por me terem tratado bem. Igualmente era da sua intenção persuadir-me que eu devia ficar entre elles por estar já familiarizado, e para colher pimenta e outras mercadorias, para quando o navio voltasse. Tinhamos então combinado que uns dez homens da tripolação, que de algum modo se pareciam commigo, se reunissem e declarassem que eram meus irmãos e que desejavam levar-me comsigo. Communicou-se-lhes isso e mais que os mesmos meus irmãos não queriam que eu tornasse com os selvagens para a terra; e sim que voltasse para o nosso paiz, pois que o nosso pai desejava ver-me ainda uma vez antes de morrer.

O capitão mandou dizer que era elle ali o superior no navio e desejava muito que eu fosse com os selvagens de novo para terra; mas que elle estava só e os meus irmãos eram muitos, pelo que nada podia contra elles. Estes pretextos todos foram dados para que não houvesse desharmonia com os selvagens. E disse eu tambem ao meu senhor, o principal, que desejava muito voltar com elle; porém podia elle bem ver, que os meus irmãos não me deixavam. Começou então o principal a dizer em voz alta a bordo que eu voltasse no primeiro navio, que elle me considerava seu filho e estava muito irritado com a gente de Uwattibi, que me queria devorar.

E uma das mulheres do principal que tinha vindo a bordo, foi por elle excitada a me gritar nos ouvidos como é costume delles, e eu gritei tambem, segundo o mesmo costume. Após isso, o capitão deu a todos algumas mercadorias, que podiam valer uns cinco ducados, em facas, machados, espelhos e pentes. Com isso partiram para as suas casas, em terra.

Assim me livrou o Senhor Todo Poderoso, o Deus de Abrão, Isaac e Jacob, do poder dos barbaros. A Elle sejam dados louvor, honra e gloria, por intermedio de Jesus Christo, seu amado filho, nosso Salvador. Amen.


[Pg 120]

CAPITULO LII

Como se chamavam os commandantes do navio; de onde era
o navio; o que ainda aconteceu antes de partirmos
do porto, e que tempo levámos em viagem
para França

O capitão do navio chamava-se Wilhelm de Moner e o piloto Françoy de Schantz. O navio tinha o nome de "Catharina de Wattauilla", etc. Apressaram-no para voltar a França, e, um dia de manhã, emquanto ainda estavamos no porto (Rio de Jennero[Pg 121] chamado), aconteceu chegar um pequeno barco portuguez, pretendendo deixar o porto depois de ter traficado com uma casta de selvagens, de sua amizade, chamados Los Markayas [os Maracayás], cujo paiz limita directamente com o dos Tuppin Ikins [Tupinambás], amigos dos francezes[104]. As duas nações são grandes inimigas.

[Pg 122]

Era pequeno o navio (como já contei); tinha vindo para me comprar aos selvagens e pertencia a um factor [feitor], chamado Peter Roesel.

Os francezes metteram-se no seu bote com algumas armas de fogo e partiram para aprisional-o. Tinham-me levado comsigo, para que eu lhe falasse de se render. Mas, ao atacarmos o barquinho, fomos repellidos e alguns francezes saíram atirados e outros feridos. Eu tambem fui gravemente ferido de um tiro e muito mais que qualquer dos outros feridos, sobreviventes. Invoquei então nesta angustia o Senhor, porque já sentia a agonia da morte; e pedi ao bondoso Pai que, uma vez que me livrara do poder dos barbaros, me conservasse a vida para que ainda pudesse chegar a terra christã e contar a outros os beneficios que elle me tinha dispensado. E fiquei outra vez completamente bom, louvado seja Deus por toda a eternidade.

No anno Domini de 1554, ultimo dia de outubro, partimos á vela do porto Rio de Jennero e fomos de volta para França. Tivemos no mar sempre bom vento, de que os marinheiros estavam admirados e acreditavam que fosse uma graça de Deus um tal tempo (como na verdade o foi).

Na vespera do Natal, depararam-se muitos peixes em torno do navio, dos que se chamam Meerschwein. Apanhámos tantos que nos deram para alguns dias. O mesmo aconteceu de tarde no dia de Reis. Deus nos mandou grande fartura de peixes, pois que não tinhamos que comer senão o que Deus nos dava do mar. Mais ou menos a 20 de fevereiro do anno LV [1555], chegámos a França, á cidade chamada Honflor [Honfleur], na Normandia. Durante toda a viagem de volta, não vimos terra alguma, durante cerca de quatro mezes. Quando foi da descarga do navio, tomei parte. Acabado isso, agradeci a todos os beneficios recebidos e pedi então um passaporte ao capitão. Elle, porém, preferia que eu fizesse mais uma viagem em sua companhia; vendo, porém, que eu não desejava ficar, arranjou-me um passaporte do Moensoral Miranta [Monsieur l'amiral], Governador da Normandia. E o capitão deu-me dinheiro para a viagem. Despedi-me e parti de Honflor para Habelnoeff [Havre Neuf] e de Habelnoeff para Depen.


[Pg 123]

CAPITULO LIII

Como em Depen eu fui levado para a casa do capitão do
navio Bellete [Bel' Eté], que tinha deixado o Prasil antes
de nós, e ainda não tinha voltado

Fôra d'aqui que havia partido o primeiro navio, Maria Bellete, de que era interprete aquelle individuo (que tinha recommendado aos selvagens que me devorassem), navio em que elle pretendia voltar para a França. No mesmo é que tambem estavam aquelles que não me quizeram recolher no bote, quando fugi dos selvagens; tambem o seu capitão era aquelle que, segundo me contaram os selvagens, lhes tinha entregue, para elles devorarem, um portuguez, aprisionado num navio como antes narrei.

Essa gente da Bellete não tinha ainda chegado com o seu barco, quando ali aportei, apezar de que, segundo o calculo do navio de Wattauilla, chegado [ao Brasil] depois daquelle, e que foi quem me comprou, já devia ter cá chegado tres mezes antes de nós. As mulheres e os amigos dessa gente vieram me procurar e me perguntaram si eu nada sabia delles. Respondi: "Sim, sei; ha uma parte má dessa gente no navio, estejam lá onde estiverem". E contei então como um delles, que esteve na terra dos selvagens e se achava a bordo, tinha aconselhado aos selvagens que me devorassem, mas que Deus, todo poderoso, tinha-me preservado; e contei como tinham vindo no bote até as cabanas, onde eu estava, a fazerem permutas com os selvagens de pimenta e macacos; e que eu tinha fugido dos selvagens e nadado até o seu bote; mas que não quizeram receber-me e como fui obrigado a voltar de novo a terra para o poder dos selvagens, que me tinham maltratado tanto. Tinham tambem entregue um portuguez aos selvagens para o devorarem, disse-lhes eu, do mesmo modo que não tinham tido compaixão de mim. Por tudo isso, via agora como Deus tinha sido tão bom para commigo, pois, louvado seja Elle, tinha eu chegado primeiro para vos dar noticias. Hão de chegar decerto quando fôr possivel; mas quero prophetizar que Deus não deixará sem castigo, por mais ou menos tempo, tamanha inclemencia e dureza como tinham[Pg 124] mostrado para commigo. Deus lhes perdôe; pois estava claro que Deus, no céo, tinha ouvido os meus lamentos e se tinha compadecido de mim. E lhes contei mais como, para os que me tinham resgatado do poder dos selvagens, tudo tinha corrido bem durante toda a viagem, como de facto se deu. Deus nos concedera bom tempo, bom vento, e nos dera peixes do fundo do mar.

Ficaram tristes e me perguntaram si eu julgava que elles ainda existiam; para os não desconsolar, disse-lhes então que ainda podiam voltar, apezar de que todos e eu tambem não podiamos presumir sinão que tivessem perecido.

Depois de toda essa conversa, despedi-me e disse que, si voltassem, contassem a elles que Deus me tinha ajudado e que eu tinha estado aqui.

De Depen parti em um barco para Lunden [Londres], em Engellandt [Inglaterra], onde fiquei alguns dias. Dali parti para Seelandt e de Seelandt para Andorff [Antuerpia]. Assim é que Deus todo poderoso, para o qual tudo é possivel, ajudou-me a voltar para a patria. Louvado seja Elle eternamente. Amen.

 

Minha oração a Deus, o Senhor, emquanto eu estive no poder dos selvagens, para ser devorado

 

Oh, tu, Deus Todo Poderoso, que fizeste o céo e a terra; tu, Deus dos nossos antepassados, Abrão, Isaac e Jacob; tu, que tão poderosamente conduziste o teu povo de Israel da mão de seus inimigos através do Mar Vermelho. A ti, que eterno poder tens, peço que me livres das mãos destes barbaros, que não te conhecem, em nome de Jesus Christo, teu amado filho, que livrou os peccadores da prisão eterna. Porém, Senhor, si é tua vontade que eu soffra, que hei de soffrer morte tão cruel das mãos destes povos que não te conhecem e que dizem, quando lhes falo de ti, que tu não tens poder de me tirar de suas mãos; então fortalece-me no ultimo momento, quando realizarem os seus designios sobre mim, para que eu não duvide da tua clemencia. Si tenho de soffrer tanto nesta desgraça, dá-me ao depois repouso e me preserva do mal que horrorizou a todos os nossos antepassados. Mas, Senhor, tu podes bem livrar-me do seu poder; livra-me, eu sei que tu me podes auxiliar e,[Pg 125] quando tu me tiveres livrado, não o quero attribuir á felicidade, sinão unicamente á mão poderosa que me auxiliou, porque agora nenhum poder de homem pode me valer. E quando me tiveres livrado de seu poder, quero louvar a tua Graça e dal-a a conhecer a todas as nações onde eu chegar. Amen.

Não posso crer que alguem possa orar de coração
Sem que esteja em grande perigo ou perseguição,
Porque emquanto o corpo vive conforme quer,
Está sempre contra o seu Creador.
Por isso, Deus, quando manda alguma desgraça,
É prova que elle nos quer ainda bem,
E ninguem deve ter disso duvida,
Porque isso é uma dadiva de Deus.
Nenhuma consolação, nem arma, existe melhor
Que a simples fé em Deus.
Por isso, cada homem de devoção
Nada melhor pode ensinar a seus filhos
Do que a comprehensão da palavra Deus,
Na qual sempre podem ter confiança.

Para que tu, leitor, não julgues
Que eu tive todo este trabalho para ter fama e honra,
Digo que é para o louvor e honra de Deus,
Que conhece todos os pensamentos do homem.
A Elle, caro leitor, te recommendo,
E peço que Elle continue a me ajudar. Amen.

FIM DO PRIMEIRO LIVRINHO

[Pg 127]


[Pg 128]

Segunda Parte


[Pg 129]

VERDADEIRA E CURTA NARRAÇÃO DO COMMERCIO E
COSTUMES DOS TUPIN INBAS, CUJO PRISIONEIRO
EU FUI. MORAM NA AMERICA. O SEU PAIZ ESTA
SITUADO NO 24º GRADUS, NO LADO DO SUL
DA LINHA EQUINOXIAL. A SUA TERRA
CONFINA COM UM DISTRICTO, CHA-
MADO RIO DE JENERO


[Pg 131]

CAPITULO I

Como se faz a navegação de Portugal para o Rio de Jennero,
situado na America, mais ou menos no 24º gradus
do Tropici Capricorni

Lissebona é uma cidade de Portugal, situada a 39 gráus ao norte da linha equinoxial. Quando se parte de Lissebona para a provincia de Rio de Jenero, situada no paiz do Prasil [Brasil], que tambem se chama America, vai-se primeiro a umas ilhas chamadas Cannarix, que pertencem ao rei de Espanha. Seis dellas mencionarei aqui: A primeira, Gran Canaria; a segunda, Lanserutta; a terceira, Forte Ventura; a quarta, Il Ferro; a quinta, La Palma; a sexta Tineriffe. Dahi se vai ás ilhas que se chamam Los insules de Cape virde. O que quer dizer: as ilhas do Cabo Verde[105], cujo Cabo Verde se acha na terra dos mouros pretos, que se chama tambem Gene[106]. As supra mencionadas ilhas estão debaixo do Tropico de Cancri[107] e pertencem ao rei de Portugal. Das ilhas navega-se Su-sudoeste para o paiz do Prasil em um grande e vasto mar, muitas vezes tres mezes e mais antes de se chegar ao paiz. Primeiro navega-se passando o Tropicum Cancri que fica para traz. Depois passa-se a lineam equinoxialem. Quando então, neste navegar, se observa o Norte, não se enxerga mais a estrella polar (chamada tambem Polum Articum). Depois chega-se á altura do Tropici Capricorni; navega-se por baixo do sol e quando se tem chegado á altura do Tropici Capricorni, na hora do meio[Pg 132] dia, vê-se o sol para o lado do Norte, e faz sempre muito calor entre os dois Tropicis. O referido paiz Prasil está, em parte, dentro dos dois Tropicis.


CAPITULO II

Como está situado o paiz America, ou Prasil,
conforme em parte tenho visto

A America é uma grande terra com muitas nações selvagens, e muita differença nas suas linguas[108]. Ha nella muitos animaes estranhos e é bella de ver-se. As arvores estão sempre verdes e nenhuma madeira desta terra se assemelha ás outras. A gente anda núa, e em nenhuma parte da terra, que está entre os Tropicis, em tempo algum do anno, faz tanto frio como aqui em Michalis; mas a parte dessa terra, que está ao sul do Tropicus Capricorni, é um pouco mais fria. Ali habita a nação de selvagens que se chamam Carios [Carijós], que usam pelles de animaes ferozes, as quaes elles preparam bem para com ellas se cobrirem. As mulheres destes mesmos selvagens fazem, de fios de algodão, uma especie de sacco, aberto em cima e em baixo, que ellas vestem e que, na lingua delles, se chama Typpoy[109]. Ha neste paiz fructas da terra e das arvores, de que a gente e os animaes se nutrem. A gente tem a pelle de côr vermelha parda, por causa do sol que a requeima. É povo bem parecido, muito ladino no praticar o mal e propenso a perseguir e devorar os seus inimigos.

A sua terra America[110] tem muitas centenas de milhas para[Pg 133] o Norte e para o Sul no comprimento, das quaes naveguei talvez umas quinhentas, tendo tocado em muitos logares do paiz.


CAPITULO III

Sobre uma grande serra que ha no paiz

Ha uma grande serra, que se estende a 3 milhas do mar, em alguns logares mais longe, em outros talvez mais perto e que chega mais ou menos até a altura de Boiga de Todolos Sanctus[111], um logar assim chamado, onde os portuguezes edificaram e moram. Esta serra estende-se ao longo do mar exactamente 204 milhas, até a altura do 29º gradus do lado do Sul da linha equinoxial, onde termina. Em alguns logares, tem ella oito milhas de largura. Por detraz da serra ha um planalto. Descem bonitos rios dessa serra e ha nella muita caça. Na serra habita uma casta de selvagens que se chama Wayganna[112]. Estes não têm habitações fixas como os outros, que moram deante e por detraz da serra. Os mesmos Wayganna estão em guerra com todas as outras nações e quando apanham algum inimigo o devoram; os outros tambem fazem o mesmo com elles. Vão á procura da caça na serra; são peritos no atirar com o arco e habeis em outras coisas, como em fazer laços e armadilhas, com que apanham caça.

Ha tambem muito mel silvestre, na serra, servindo de alimento.

Sabem tambem imitar a voz dos animaes e o canto dos passaros, para melhor apanhal-os e matal-os. Fazem fogo com dois páos,[Pg 134] como os outros selvagens tambem o fazem. Geralmente assam as carnes que comem. Viajam com as mulheres e filhos. Quando se acampam junto á terra de seus inimigos, fazem cercas de arbustos ao redor das suas cabanas, para que os não possam surprehender, o tambem por causa dos tigres, e põem espinhos (Maraga eibe Ju chamados) ao redor das cabanas, do mesmo modo como aqui se fazem as armadilhas. Praticam isto de medo de seus inimigos. Toda a noite, conservam o fogo acceso. Quando raia o dia apagam-no, para que se não veja a fumaça que os denuncia. Deixam crescer o cabello na cabeça, e tambem conservam unhas compridas. Usam tambem de um chocalho, chamado Maraka, como os outros selvagens e tem-no em conta de um Deus. Gostam igualmente de beber e dançar. Tambem se servem de dentes de animaes para cortar, e de machados de pedra, como as outras nações selvagens tambem usaram antes de estarem em contacto com os navios extrangeiros.

Partem tambem muitas vezes em busca de seus inimigos. Quando querem aprisional-os, escondem-se por detráz das tranqueiras que ficam em frente das cabanas destes. Fazem isso para colherem alguem que acaso sáia das cabanas a buscar lenha.

São tambem mais crueis com seus inimigos do que os inimigos com elles. Por exemplo: cortam-lhes os braços e as pernas, emquanto ainda vivos, pela grande gula que os distingue. Os outros, porém, matam primeiro antes de oa despedaçar para os comer.


CAPITULO IV

Como os selvagens Tuppin Inba, dos quaes fui prisioneiro,
têm suas moradas

Têm elles as suas habitações em frente da serra grande, já mencionada, junto do mar. Tambem por detráz da mesma serra estende-se o seu dominio, cerca de 60 milhas. Um grande rio desce da serra e corre para o mar; em um logar deste rio moram elles e[Pg 135] chamam Paraeibe[113]. A extensão do terreno que elles ahi occupam pode ser de 28 milhas, e estão ahi rodeados de inimigos. Do lado do Norte confinam com uma casta de selvagens, que se chamam Weittaka[114], e são seus inimigos; do lado do Sul chamam-se seus inimigos Tuppin Ikin, e do lado da terra a dentro os seus inimigos são chamados Karaya[115]. Depois vêm os Wayganna, que moram na serra perto delles, e mais uma nação que se chama Markaya [Maracayá] que habita entre estes, e são seus grandes perseguidores. Os outros já mencionados guerream-se entre si e tanto que um delles apanha algum dos outros o devora.

Gostam muito de collocar as suas cabanas onde a agua e a lenha não fiquem longe. O mesmo quanto á caça e ao peixe, e quando têm devastado um logar mudam as moradas para outra parte. Para construir as suas habitações, um dos chefes dentre elles reúne para isso uns 40 homens e mulheres, quantos pode encontrar, geralmente seus amigos e parentes.

Levantam estes a cabana, que tem mais ou menos 14 pés de largura e uns 150 pés de comprimento, e, si forem muitos, duas braças de altura; o tecto é redondo, como uma abobada. Cobrem depois com uma grossa camada de ramas de palmeira, de modo a não chover dentro. Ninguem tem quarto separado; cada casal de homem e mulher tem um espaço na cabana, de um dos lados, de 12 pés; do outro lado, um outro casal, o mesmo espaço. Assim se enchem as cabanas e cada casal tem o seu fogo. O chefe tem o seu aposento no centro da cabana. Estas têm geralmente tres portinhas, uma em cada extremidade e outra no centro; são baixas de modo a ser necessario a gente curvar-se para sair e entrar. Poucas das suas aldeias têm maia de sete cabanas. No meio, entre as cabanas, deixam um espaço, onde matam os prisioneiros. São tambem[Pg 136] inclinados a fazer fortificações ao redor das suas cabanas; e o fazem assim: erguem, ao redor das cabanas, uma cerca de troncos rachados de palmeiras. A cerca costuma ter braça e meia de altura, e fazem-na tão junta que nenhuma flecha possa atravessal-a. Deixam umas aberturas pelas quaes atiram. Ao redor da cerca fazem ontra cerca de varas grossas e compridas, porém não as collocam muito perto uma da outra, apenas tanto a não deixar passar um homem. Alguns delles têm o costume de espetar em postes, em frente a entrada das palhoças, as cabeças dos que foram devorados.

[Pg 137]


CAPITULO V

Como fazem fogo

Têm elles uma especie de madeira, chamada Vrakueiba[116], que seccam e da qual cortam dois páosinhoe da grossura de um dedo que esfregam um no outro. Com isto produz-se um pó, que o calor da fricção accende, e assim fazem fogo, como o mostra esta gravura.


CAPITULO VI

Onde dormem

Dormem em camas a que chamam Inni[117] na sua lingua, as quaes são feitas de fios de algodão. Amarram-nas em dois esteios, acima do chão, e ao lado conservam fogo acceso[Pg 138] durante a noite. Não gostam tambem de sair das cabanas á noite, para satisfazerem as suas necessidades, por medo do diabo, a que chamam Ingange[118], e ao qual vêem muitas vezes.


CAPITULO VII

Como são destros em caçar animaes e peixes com flechas

Por onde andam, quer na mata quer na agua, levam sempre comsigo o seu arco e as suas flechas. Andando na matta, caminham de cabeça erguida, a examinarem as arvores para descobrirem algum passaro grande, macaco ou outro animal, que vive sobre as arvores, para o matar, e o perseguem até que o matam. Raras vezes acontece ir alguem á caça e voltar sem trazer coisa alguma.

Do mesmo modo perseguem os peixes á beira-mar e têm uma vista muito penetrante. Mal apparece um peixe atiram e poucos tiros erram. Si acaso ferem algum, atiram-se na agua e nadam[Pg 139] atráz delle. Certos peixes grandes, quando feridos, vão para o fundo, mas elles seguem atráz, mergulham até seis braças, e os colhem.

Usam tambem de pequenas redes, feitas de fibras, que tiram de umas folhas agudas e compridas Tockaun [tocum]; e quando querem pescar com redes, reúnem-se alguns e cada qual occupa o seu logar na agua. Quando esta não é funda, entram uns poucos, formando circulo, e batem na agua para o peixe afundar e cair então na rede[119]. Quem mais apanha divide com os outros.

[Pg 140]

Muitas vezes vêm á pescaria aquelles que moram longe do mar. Apanham muito peixe, seccam-no ao fogo e o móem num pilão, fazendo uma farinha, que se conserva por muito tempo. Levam-na comsigo e a comem com farinha de raiz, pois que, si levassem o peixe apenas frito, não durava nada, por não o salgarem; ademais a farinha dá para maior porção de gente do que um peixe inteiro assado.


CAPITULO VIII

Que feição apresenta esta gente

E_acute uma gente bonita de corpo e de feição, tanto os homens como as mulheres, iguaes á gente daqui; sómente são queimados do sol, pois andam todos nús, moços e velhos, e nada têm que encubra as partes vergonhosas. Desfeiam-se a si mesmos com pinturas e não têm barbas, porque as arrancam pela raiz, logo que lhes nascem. Fazem furos na boca e nas orelhas e nelles introduzem pedras, que são seus ornamentos, e se enfeitam com pennas.


CAPITULO IX

Com que elles cortam, visto não poderem adquirir ferramentas christãs, como machados, facas e tesouras

Tinham antigamente, antes de cá virem navios, e ainda o têm em muitos logares do paiz, onde navio algum chegou, uma especie de pedra preta azulada, a que davam a forma de uma cunha, cuja parte mais larga é mal cortante, com mais ou menos um palmo de cumprimento, dois dedos de grossura e a largura de uma mão. Umas são maiores, outras menores. Tomam depois um páu fino que vergam ao redor da pedra e amarram com fibras de embira.

[Pg 141]

Servem-se tambem de dentes de porco do matto, que amolam até ficarem cortantes, e os amarram depois entre dois páusinhos. Com isto raspam suas flechas e arcos até que fiquem tão roliços como si foram torneados.

Empregam tambem o dente de um animal chamado Pacca; aguçam-lhe a ponta e, si sentem alguma doença no corpo que provém do sangue, arranham a parte até sair sangue; e este é o seu modo de sangrar.


CAPITULO X

Qual é o seu pão. Como se chamam os seus fructos, como elles os plantam e como os preparam para comer

Nos logares onde querem plantar, cortam primeiro as arvores e deixam-nas seccar de um a trez mezes. Deitam-lhes fogo, ao depois queimam-nas e então é que plantam entre os troncos as raízes de que precisam, a que chamam mandioka. É arbusto de uma braça de altura, que dá umas tres raizes. Quando as querem comer, arrancam o pé, quebram-lhe as raizes e depois os galhos. A estes collocam-n'os outra vez na terra, onde criam raizes de novo, e com seis mezes crescem tanto que dão já o que comer. A raiz preparam-na de trez modos.

Primeiro ralam as raízes numa pedra, até que fiquem em grãos miudos; tiram-lhe depois o succo com um apparelho feito da folhagem da palmeira, ao qual chamam tippiti, que elles esticam; passam depois tudo numa peneira e fazem da farinha uns bolinhos achatados.

A vasilha, em que seccam e torram a farinha, é de barro cozido e tem a forma de uma grande bacia chata. Tambem tomam as raízes frescas e as deitam n'agua, até apodrecerem, que é quando então as retiram, e põem-nas ao fumeiro, onde seccam. A essas raízes seccas chamam Keinrima[120] e conservam-se por muito tempo,[Pg 142] e quando precizam dellas, socam-nas em um pilão de madeira, onde ficam alvas como a farinha de trigo. Disto fazem elles bolinhos a que chamam byyw[121].

Tambem tomam a mandioka apodrecida, antes de secca, e a misturam com a secca e com a fresca, com o que preparam e torram uma farinha que pode conservar-se um anno, sempre bôa para comer. Esta farinha chamam-na V. y. than[122].

[Pg 143]

Fazem farinha tambem de peixe e de carne. Assam a carne ou o peixe ao fogo, ou ao fumo, e deixam ficar bem duro; rasgam-no com a mão em pequeninos pedaços, põem-no mais uma vez ao fogo, em uma vasilha de barro cozido a que chamam Yneppaun[123]. Depois soccam-no em pilão de madeira até ficar reduzido á farinha, o passam em uma peneira. Esta farinha conserva-se por muito tempo. Não têm o costume de salgar o peixe ou a carne. Comem então a tal farinha com a de raízes, e tem gosto bem regular.


CAPITULO XI

Como cozinham a comida

Ha muitas raças de povos que não comem sal. Aquelles entre os quaes estive prisioneiro comem, ás vezes, sal porque viram usar delle os francezes, com os quaes negociam. Mas contaram-me de uma nação, cuja terra se limita com a delles, nação Karaya, moradora no interior, longe do mar, que faz sal das palmeiras e o come, sendo que os que se servem muito delle não vivem muito tempo. Preparam-no da seguinte maneira, que eu vi e ajudei a preparar: derrubam um grosso tronco de palmeira e racham-no em pequenas achas; fazem depois uma armação de madeira secca e lhe põem as achas em cima, queimando-as juntamente com a madeira secca até ficarem reduzidas á cinza. Das cinzas fazem então decoada, que fervem, e assim obtêm sal. Eu julgava que era salitre e o experimentei ao fogo; mas não era. Tinha gosto de sal e era de côr parda. A maior parte da gente, porém, não come sal.

Quando cozinham alguma coisa, seja peixe ou carne, põem-lhe em geral pimenta verde, e, quando está mais ou menos bem cozida, tiram-na do caldo e a reduzem a uma sopa rala a que chamam mingáu e que bebem em cascas de purungas[124], que servem de[Pg 144] vasilhas. E quando querem guardar alguma comida por mais tempo, carne ou peixe, penduram-na uns quatro palmos acima do fogo, em varas, e fazem bastante fogo por baixo. Deixam-na então seccar e enfumaçar, até ficar bem secca. Quando querem comel-a, aferventam-na outra ves e se servem. Á carne assim preparada chamam-na Mockaaein[125].


CAPITULO XII

Que regimen e que ordem seguem em relação ás autoridades e á justiça

Não têm regimen especial, nem justiça. Cada cabana tem um chefe, que é o seu principal. Todos os seus chefes são de uma e mesma raça, com mando e regimen, e podem fazer tudo o que quizerem. Póde por ventura um delles ter-se distinguido mais na guerra do que o outro; este então é sempre mais ouvido, quando se trata de novas guerras, como o já referido Konian-Bebe. No mais, não vi direito algum especial entre elles, sinão que os mais moços prestam obediencia aos mais velhos, como é dos seus costumes.

Quando alguem mata ou fere a outrem, os amigos deste se dispõem logo a matar, por sua vez, o offensor, o que, porém, raras vezes acontece. Prestam obediencia tambem aos chefes das cabanas, e o que estes mandarem fazer, executam sem constrangimento nem medo, e sómente por boa vontade.


[Pg 145]

CAPITULO XIII

Como fabricam os potes e as vasilhas de que usam

As mulheres é que fazem as vasilhas de que precisam. Tiram o barro e o amassam; delle fazem todas as vasilhas que querem; deixam-nas seccar por algum tempo, e sabem pintal-as bem. Quando querem queimal-as, emborcam-nas sobre pedras e amontoam ao redor grande porção de cascas de arvores, que accendem, e, com isto, ficam queimadas, pois que se tornam em brazas, como ferro quente.


CAPITULO XIV

Como fabricam as bebidas com que se embriagam e como celebram essas bebedeiras

As mulheres é que fazem tambèm as bebidas. Tomam as raízes da mandioka, que deitam a ferver em grandes potes, e quando bem fervidas, tiram-nas e passam para outras vasilhas ou potes, onde deixam esfriar um pouco. Então as moças assentam-se ao pé a mastigarem as raízes, e o que fica mastigado é posto numa vasilha áparte.

Uma vez mastigadas todas essas raízes fervidas, tornam a pôr a massa mascada nos potes, que então enchem d'agua e misturam muito bem, deixando tudo ferver de novo.

Ha então umas vasilhas especiaes, que estão enterradas até o meio e que elles empregam, como nós os toneis para o vinho ou a cerveja. Ahi despejam tudo e tampam bem; começa a bebida a fermentar e torna-se forte. Assim fica durante dois dias, depois do que, bebem e ficam bebedos. É densa e deve ser nutritiva.

Cada cabana faz sua propria bebida. E quando uma aldeia inteira quer fazer festas, o que de ordinario acontece uma vez por[Pg 146] mez, reúnem-se todos primeiro em uma cabana, e ahi bebem até acabar com a bebida toda; passam depois para outra cabana, e assim por diante até que tenham bebido tudo em todas ellas.

Quando bebem assentam-se ao redor dos potes, alguns sobre achas de lenha e outros no chão. As mulheres dão-lhes a bebida por ordem. Alguns ficam de pé, cantam e dançam ao redor dos potes. E no logar onde estão bebendo, vertem tambem a sua agua.

O beber dura a noite inteira; ás vezes, tambem dançam por entre fogueiras e, quando ficam bebedos, gritam, tocam trombetas[Pg 147] e fazem um barulho formidavel. Raro ficam zangados uns com os outros. São tambem muito liberaes, e o que lhes sobra em comida repartem com outros.


CAPITULO XV

Qual o enfeite dos homens, como se pintam, e quaes são os seus nomes

Rapam uma parte da cabeça e deixam ao redor uma corôa de cabellos, como os frades. Muitas vezes lhes perguntei aonde tinham aprendido esta moda de cabelleira. Responderam-me que seus antepassados a tinham visto num homem que se chamava Meire Humane[126], e que tinha feito muitos milagres entre elles; e entendiam que tivesse sido um propheta ou apostolo.

Perguntei-lhes mais com que cortavam os cabellos antes dos navios lhes trazerem tesouras. Respondiam que para isso tomavam[Pg 148] uma cunha de pedra, e pondo uma outra por baixo dos cabellos, batiam até cortal-os. A corôa no meio da cabeça faziam-na com uma raspadeira, fabricada de uma pedra crystal de que usam muito para cortar.

Têm mais um ornato feito de pennas vermelhas, a que chamam Kanittare[127] e que amarram em roda da cabeça.

Usam tambem trazer no labio inferior um grande orificio, que fazem logo na infancia. Furam o beiço com um pedaço de osso de veado aguçado e no orificio introduzem depois uma pedrinha ou pedacinho de páo e untam isso com os seus unguentos; o orificio continúa aberto. Quando ficam homens e aptos para as armas, fazem esse orificio maior e enfiam nelle uma pedra verde, que tem esta forma: a ponta superior e mais fina, fica para dentro dos labios e a grossa para fóra, deixando o labio sempre pendido pelo pêzo da pedra. Nas faces têm elles ainda, de cada lado da boca, uma pequena pedra.

Alguns têm-nas de pedra de crystal, estreitas sim, mas compridas. Usam ainda um enfeite que fazem de grandes búzios marinhos, a que chamam Matte pue[128], da forma de uma meia lua. Penduram-no ao pescoço, é branco como a neve, e o chamam Bogessy[129].

Fazem tambem collares brancos, de caracóes marinhos, que trazem ao pescoço, da espessura de uma palma e que dão muito trabalho para se fazerem.

Amarram tambem feixes de pennas nos braços; pintam-se de preto e tambem com pennas vermelhas e brancas, misturadas sem ordem; estas, porém, grudadas no corpo com substancias que tiram das arvores e que passam nas partes onde querem pôr as pennas; applicando então estas de modo a ficarem adherentes. Pintam[Pg 149] tambem um braço de preto e outro de vermelho, e do mesmo modo as pernas e o corpo.

Usam elles mais um enfeite de pennas de avestruz, enfeite grande e redondo, que amarram na parte de tráz, quando vão á guerra contra os seus inimigos, ou fazem alguma festa. Chama-se Enduap.

Tiram seus nomes de animaes ferozes e tomam muitos nomes, mas com certas particularidades. Logo que nascem dá-se-lhes um nome. Conservam-no sómente até ficarem aptos para manejarem armas e matarem inimigos. A quantos depois matam, outros tantos nomes tomam.


CAPITULO XVI

Quaes são os enfeites das mulheres

As mulheres pintam-se por baixo dos olhos e por todo o corpo, do mesmo modo como dissemos que os homens o fazem. Deixam, porém, crescer os cabellos, como todas ellas, e não têm enfeites especiaes. Abrem orificios nas orelhas, nos quaes penduram uns objectos do comprimento de um palmo, mais ou menos, roliços e da grossura de um dedo pollegar, a que chamam na sua lingua Nambibeya. Fazem-nos tambem de conchas do mar, a que chamam Matte pue.

Seus nomes são de passaros, peixes e fructas das arvores, e têm[Pg 150] um só nome desde crianças; porém quantos escravos os seus maridos matam, tantos nomes dão elles ás suas mulheres.

Ao catarem os piolhos uma da outra, vão os comendo. Perguntei-lhes muitas vezes porque assim faziam, e me responderam: "São nossos inimigos que nos comem a cabeça, e por isso nos vingamos delles".

Tambem não ha parteiras; quando uma mulher está para dar á luz, o primeiro que estiver perto, homem ou mulher, a acóde logo. Vi algumas que se levantavam, commummente, no quarto dia depois do parto.

Carregam os seus filhos ás costas envolvidos em pannos de algodão, e assim com elles trabalham. As crianças ahi dormem e andam contentes, por mais que ellas se abaixem ou se movam.


CAPITULO XVII

Como dão o primeiro nome ás crianças

A mulher de um selvagem, dos que ajudaram a me capturar, tinha dado á luz um filho. Alguns dias depois, convidou o marido os seus vizinhos das cabanas proximas e com elles conferenciou a respeito do nome que havia de dar á criança, para que esta fôsse valente e temivel. Deram-lhe muitos nomes, que não lhe agradaram. Deliberou então dar-lhe o nome de um dos seus quatro antepassados, e disse que crianças que têm tres nomes vingam bem e ficam dextros em fazer prisioneiros. Os seus quatro antepassados se chamavam: o primeiro, Krimen; o segundo, Hermittan; o terceiro Koem[130]; o quarto nome não retive na memoria. Pensei ao ouvil-o falar de Koem, que podia ser Cham; mas Koem quer dizer na lingua delles manhã. Disse-lhe que désse este nome á crianca,[Pg 151] porque tinha sido o de um dos seus antepassados. A criança ficou com um destes nomes. É assim que dão nomes aos seus filhos, sem baptismo, nem circumcisão.


CAPITULO XVIII

Quantas mulheres cada um tem, e como vive com ellas

A maior parte delles têm uma só mulher; outros têm mais. Mas alguns dos seus principaes tem 13 ou 14 mulheres. O principal a quem me deram da ultima vez, e de quem os francezes me compraram, chamado Abbati Bossange, tinha muitas mulheres e a que fôra a primeira era a superiora entre ellas. Cada uma tinha o seu aposento na cabana, seu proprio fogo e sua propria plantação de raízes; e aquella com quem elle vivia, e em cujo aposento ficava, é que lhe servia o comer; e assim passava de uma para outra. As crianças que lhes nascem, emquanto meninos e pequenos, educam-nas para a caça; e o que os meninos trazem, cada qual dá a sua mãe. Ellas então cozinham e partilham com os outros; e as mulheres se dão bem entre si.

Tambem têm o costume de fazer presentes de suas mulheres, quando aborrecidos dellas. Fazem do mesmo modo presentes de uma filha ou irmã.


CAPITULO XIX

Como elles contractam os casamentos

Contractam os casamentos de suas filhas, ainda crianças, e logo que ellas se fazem mulheres, cortam-lhes o cabello da cabeça; riscam-lhes nas costas marcas especiaes e lhes penduram ao pescoço uns dentes de animaes ferozes. Uma vez crescido o[Pg 152] cabello de novo, as incisões cicatrizam-se, deixando ver ainda o signal desses riscos, pois que misturam certas tintas com o sangue, para ficar preto quando saram, coisa que é tida como uma honra.

Quando terminadas estas ceremonias, entregam as filhas a quem as deve possuir e não celebram nenhuma outra ceremonia especial. Homem e mulher procedem decentemente e fazem os seus ajuntamentos ás occultas. Item, consegui ver que um dos seus chefes em certa occasião, cedo pela manhã, ao visitar todas as suas cabanas, riscava as pernas das crianças com um dente afiado de peixe; isto só para lhes fazer medo, de modo que, quando choravam com manha, os paes as ameaçavam: "Ahi vem elle!" e ellas se calavam.


CAPITULO XX

Quaes são as suas riquezas

Não ha divisão de bens entre elles. Nada sabem de dinheiro. Suas riquezas são pennas de passaros; e quem tem muitas é que é rico. Quem traz pedras nos labios, entre elles, é um dos mais ricos.

Cada casal, homem e mulher, tem sua plantação de raízes, das quaes se alimentam.


CAPITULO XXI

Qual é a sua maior honra

A sua maior honra é prender e matar muitos inimigos. Costume entre elles é que, quantos inimigos cada qual tiver morto, tantos nomes pode tomar.

E o mais nobre entre elles, é aquelle que conta mais nomes desta especie.


[Pg 153]

CAPITULO XXII

Em que crêem

Têm a sua crença em um fructo que cresce como uma abobora e do tamanho de um meio póte. Oco, como é, atravessam-lhe um páu. Fazem-lhe depois um orificio á guisa de boquinha e lhe deitam umas pedrinhas dentro, para que chocalhe. Com isto tangem quando cantam e dançam, e lhe chamam Tammaraka, cuja forma é como segue:

Este instrumento é só dos homens e cada um tem o seu. Ha entre elles alguns individuos a que chamam Paygi[131] e que são tidos por adivinhos. Estes percorrem uma vez por anno o paiz todo, de cabana em cabana, asseverando que têm comsigo um espirito que vem de longe, de togares extranhos, e que lhes deu a virtude de fazer falar todos os Tammarakas que elles queiram e o poder de alcançar tudo que se lhes pede. Cada qual quer então que este[Pg 154] poder venha, para o seu chocalho; faz-se uma grande festa, com bebidas, cantos e adivinhações, e praticam muitas ceremonias singulares. Depois marcam os adivinhos um dia para uma cabana, que mandam evacuar, e nenhuma mulher nem criança pode ficar lá dentro. Ordenam em seguida que cada um pinte o seu Tammaraka de vermelho, enfeitado com pennas, e o mande para elles lhe darem o poder de falar. Dirigem-se então para a cabana. O adivinho toma assento, em logar elevado, e tem junto de si o Tammaraka fincado no chão. Os outros então fincam os seus. Dá cada qual os seus presentes ao adivinho, como sejam flechas, pennas e penduricalhos para as orelhas, afim de que o seu Tammaraka não fique esquecido. Uma vez todos reunidos, toma o adivinho cada Tammaraka de per si, e o defuma com uma herva, a que chamam Bittin[132]. Leva depois o Tammaraka á boca; chocalha-o e lhe diz: "Nee kora [nheen coíre], fala agora, e deixa-te ouvir; estás ahi dentro?" Depois diz baixo e muito junto uma palavra, que é difficil de se saber si é do chocalho, ou si é delle, e todos acreditam que é do chocalho. Na verdade, porém, é do proprio adivinho, e assim faz elle com todos os chocalhos, um após o outro. Cada qual pensa então que o seu chocalho tem grande poder. Os adivinhos exortam-n'os depois a que vão para a guerra e apanhem inimigos, porque os espiritos que estão nos Tammaraka têm gana de comer carne de prisioneiros; e com isto, se decidem a ir á guerra.

Mal o adivinho Paygi tem transformado em idolos todos os chocalhos, toma cada qual o seu; chama-o seu querido filho e lhe levanta uma pequena cabana, na qual deve ficar. Dá-lhe comida e lhe pede tudo o que precisa, tal como nós fazemos com o verdadeiro Deus. São estes os seus Deuses.

Com o Deus verdadeiro, que creou o céo e a terra, elles não se importam e acham que é uma coisa muito natural que o céo e a terra existam. Tambem nada sabem de especial do começo do mundo.

Dizem que houve, uma vez, uma grande enchente em que se afogaram todos os seus antepassados e que alguns se salvaram em[Pg 155] uma canôa, outros em arvores altas, o que eu penso deve ter sido o dilivio.

Quando me achei pela primeira vez entre elles e me contaram essas coisas, pensei que se tratava talvez de algum phantasma do diabo, pois que me contaram diversas vezes como esses idolos falavam. Penetrando nas cabanas, onde estavam os adivinhos que deviam fazel-os falar, notei que todos se assentavam. Mas, logo que vi a experteza, saí da cabana e disse commigo: "Que pobre povo illudido!"


CAPITULO XXIII

Como elles tornam as mulheres adivinhas

Entram primeiro em uma cabana e pegam todas as mulheres, uma após outra, e as defumam. Depois, tem cada uma de gritar, pular e correr em roda, até que fique tão cansada, que cáia no chão, como desfallecida. O adivinho diz então: "Vejam, agora está morta; mas eu quero fazel-a viver de novo." Logo que ella volta a si, diz elle: "Agora está apta para falar do futuro". Assim, quando partem para a guerra, obrigam essas mulheres a adivinhar o que ha de acontecer na lucta.

Uma vez a mulher de meu senhor (aquelle a quem eu tinha sido entregue para me matar) começou de noite a vaticinar e disse ao marido que um espirito de terra extranha se tinha dirigido a ella e lhe perguntára, quando era que eu devia ser morto e onde estava o páu com que me deviam matar. Elle respondeu: "Não demorará, tudo está prompto; porém desconfio de que não é elle portuguez, mas francez".

Quando a mulher acabou a sua adivinhação perguntei-lhe por que desejava tanto a minha morte, visto que eu não era inimigo, e si ella não temia que o meu Deus lhe mandasse algum castigo. "Eu não devia incommodar-me com isso, disse ella, mas eram os espiritos extranhos que queriam saber". Taes ceremonias celebram elles muitas.


[Pg 156]

CAPITULO XXIV

Como navegam nas aguas

No paiz ha uma especie de arvores a que chamam Yga Ywera[133], cuja casca os selvagens destacam de cima a baixo, fazendo uma armação especial ao redor da arvore para tiral-a inteira.

Depois, tomam a casca e a transportam da serra até o mar; aquecem-na ao fogo, dobram-na por deante e por detrás e lhe amarram dois páus atravessados no centro para que se não achate, e fazem assim uma canôa, na qual cabem 30 pessoas, para irem á guerra. A casca tem a grossura de um dedo pollegar, mais ou menos 4 pés de largura e 40 de comprimento; algumas mais compridas e outras mais curtas. Nellas remam apressados e navegam longe tanto quanto querem. Quando o mar está bravo, puxam as canôas para a terra até o tempo ficar bom. Não vão mais de duas milhas, mar a fóra; mas, ao longo da terra, navegam muito longe.


CAPITULO XXV

Porque um inimigo devora o outro

Não o fazem por fome, mas por grande odio e inveja; e quando na guerra combatem, gritam um para o outro, por grande odio: "Dete Immeraya Schermiuramme beiwoe"[134], "a ti succedam todas as desgraças, minha comida". "De kange Juca oypota[Pg 157] kurine"[135], "eu quero ainda hoje cortar a tua cabeça". "Sche innam me pepicke keseagu"[136], "para vingar a morte de meus amigos, estou aqui". "Yande soo sche mocken sera quora ossarime rire"[137], etc., "tua carne será hoje, antes que o sol entre, o meu assado". Tudo isso fazem por grande inimizade.


CAPITULO XXVI

Como fazem seus planos, quando querem ir á terra de seus inimigos para os guerrear

Quando se dispõem a levar a guerra á terra de seus inimigos, os chefes se reunem e conferenciam como o devem fazer. Isto communicam a todas as cabanas para que se preparem, e dão o nome de uma fructa cujo amadurecimento marcará o tempo da partida, pois que não conhecem a differença do anno e do dia. Tambem determinam o tempo da partida, pelo tempo da desóva de um peixe a que chamam Pratti[138] na lingua delles, e o tempo da desóva chamam Pirakaen[139]. Para esta epoca apromptam as suas canôas, suas flechas e farinha dura de raízes, que chamam Vythan [uytã], para mantimento. Depois consultam os Pagy, os adivinhos si alcançarão victoria. Estes, em geral, dizem que sim, mas lhes ordenam que tomem sentido nos sonhos que têm a respeito dos inimigos, e quando a maior parte delles sonha que vêem[Pg 158] assar a carne dos inimigos, quer isto dizer que terão victoria. Mas ai vêem assar a sua propria carne, não é de bom presagio e devem ficar em casa. Quando os seus sonhos lhes agradam, aprestam-se em todas as cabanas; fazem muita bebida, bebem e dançam com os idolos Tammaraka, e cada um pede ao seu que o ajude a apanhar um inimigo. Depois partem. Ao chegarem perto da terra dos seus inimigos, ordenam os chefes, um dia antes daquelle em que vão invadir a terra daquelles, que reparem bem nos sonhos que tiverem duraute a noite.

Tomei parte com elles numa expedição. Ao chegarmos perto da terra dos seus contrarios e, na noite anterior áquella em que a pretendiam invadir, o chefe percorreu o acampamento todo a dizer que attentassem bem nos sonhos que tivessem e ordenou mais que os moços, logo que raiasse o dia, fossem caçar e pescar. Isso feito, mandou o chefe preparar tudo. Depois convidou aos outros chefes a que viessem para a cabana delle. Assentaram-se todos no chão e fizeram roda. Mandou-lhes servir a comida. Acabada esta, contaram-lhe os seus sonhos, mas sómente os que lhes agradaram; depois dançaram de alegria com os Tammarakas.

Fazem o reconhecimento das aldeias dos seus inimigos durante a noite e, ao raiar do dia, investem.

Si apanham algum que esteja gravemente ferido, matam-no logo e levam-lhe a carne depois de assada para a casa; mas si está são o prisioneiro, levam-no vivo. Depois matam-no na cabana.

Atacam com grande vozeria; pizam duro no chão; tocam trombetas, feitas de cabaças, e levam todos cordas, enleadas ao redor do corpo, para amarrar os inimigos; pintam-se e enfeitam-se com pennas vermelhas, para não se confundirem com os outros; e atiram com presteza. Arremessam tambem flechas accesas sobre as cabanas de seus inimigos para incendial-as. E quando algum dos delles recebe um ferimento, applicam-lhe hervas proprias com que se curam.


[Pg 159]

CAPITULO XXVII

Qual é o seu armamento para a guerra

Têm elles os seus arcos, e as pontas das flechas são de ossos que aguçam e amarram; tambem fazem-nas de dentes do peixe a que chamam Tiberaun[140] e que apanham no mar. Usam tambem algodão, que misturam com cera, amarram nas flechas e accendem; são essas as suas flechas de fogo. Fazem tambem escudos de cascas de arvores e de couros de animaes ferozes. Enterram tambem espinhos, como aqui as armadilhas de tesoura.

Ouvi tambem delles, mas não vi, que, quando querem, expulsam os seus inimigos das cabanas fortificadas, com empregarem a pimenta que cresce no paiz, desta forma: fazem grandes fogueiras e, quando o vento sopra põem-lhe grande porção de pimenta, cuja fumaça, attingindo as cabanas, os obriga a fugirem; e eu o creio. Estava uma vez com os portuguezes numa localidade da terra de Brannenbucke [Pernambuco] chamada, a que já me referi, e ahi aconteceu-nos de ficar num rio com o barco em secco, porque a maré baixara. Vieram muitos selvagens para nos atacar; mas como não o puderam amontoaram então muita lenha e galhos seccos, entre o navio e a margem, para nos obrigar a sair, por effeito da fumaça da pimenta; mas não lograram pegar fogo na lenha.


[Pg 160]

CAPITULO XXVIII

Com que ceremonias matam e comem seus inimigos. Como os matam e como os tratam

Quando trazem para casa os seus inimigos, as mulheres e as crianças os esbofeteiam. Enfeitam-n'os depois com pennas pardas; cortam-lhes as sobrancelhas; dançam em roda delles, amarrando-os bem, para que não fujam.

[Pg 161]

Dão-lhes uma mulher para os guardar e tambem ter relações com elles. Si ella concebe, educam a criança até ficar grande; e depois, quando melhor lhes parece, matam-na a esta e a devoram. Fornecem aos prisioneiros boa comida; tratam assim delles algum tempo, e ao começarem os preparativos, fabricam muitos potes especiaes, nos quaes põem todo o necessario para pintal-os; ajuntam feixes de pennas que amarram no bastão com que os hão de matar.

Trançam tambem uma corda comprida a que chamam Massurana [Mussurana] com a qual os amarram na hora de morrer.[Pg 162] Terminados todos os preparativos, marcam o dia do sacrificio. Convidam então os selvagens de outras aldeias para ahi se reunirem naquella época. Enchem todas as vasilhas de bebidas e, um ou dois dias antes que as mulheres tenham feito essas bebidas, conduzem o prisioneiro uma ou duas vezes pela praça e dançam ao redor delle.

Reunidos todos os convidados, o chefe da cabana lhes dá as boas vindas e lhes diz: "Vinde ajudar agora a comer o vosso inimigo". Dias antes de começarem a beber, amarram a mussurana ao pescoço do prisioneiro. No mesmo dia, pintam e enfeitam o bastão chamado Iwera Pemme, com que o matam, e é da forma que mostra esta figura [ao lado].

Tem este mais de uma braça de cumprido e o untam com uma substancia que gruda. Tomam então cascas pardas de ovos de um passaro chamado Mackukawa, e moem-nas até reduzil-as a pó, que esfregam no bastão. Uma mulher então risca figuras nesse pó adherente ao bastão, e emquanto ella desenha, as mulheres todas cantam ao redor. Uma vez prompto o Iwera Pemme com os enfeites de pennas e outras preparações, penduram-no em uma cabana desoccupada e cantam ao redor delle toda a noite.

Do mesmo modo pintam a cara do prisioneiro, e emquanto uma das mulheres o está pintando, as outras cantam. E logo que começam a beber, levam o prisioneiro para lá, bebem com elle e com elle se entretêm.

Acabando de beber, descançam no dia seguinte; fazem depois uma casinha para o prisioneiro, no logar onde elle deve morrer. Ali fica elle durante a noite, bem guardado.

[Pg 163]

De manhã, antes de clarear o dia, vão dansar e cantar ao redor do bastão com que o devem matar. Tiram então o prisioneiro da casinha e a desmancham, para abrir espaço; amarram a mussurana ao pescoço e em redor do corpo do paciente, esticando-a para os dois lados. Fica elle então no meio, amarrado, e muitos delles a segurarem a corda pelas duas pontas. Deixam no assim ficar por algum tempo; dão-lhe pedrinhas para elle arremessar sobre as mulheres que andam em roda ameaçando de devoral-o. Estão ellas então pintadas e promptas para, quando o prisioneiro estiver reduzido á postas, comerem os quatro primeiros pedaços ao redor das[Pg 164] cabanas. Nisto consiste o seu divertimento. Isto prompto, fazem um fogo cerca de dois passos do prisioneiro para que este o veja.

Depois vem uma mulher correndo com o Iwera Pemme; vira os feixes de pennas para cima; grita de alegria e passa pelo prisioneiro, para que este o veja.

Feito isto, um homem toma da clava; dirige-se para o prisioneiro; pára na sua frente e lhe mostra o cacete para que elle o veja. Emquanto isso, aquelle que deve matar o prisioneiro vai com uns 14 ou 15 dos seus e pinta o proprio corpo de pardo, com cinza. Volta então com os seus companheiros para o logar onde está[Pg 165] o prisioneiro, e aquelle que tinha ficado em frente deste lhe entrega á maça. Surge agora o principal das cabanas; toma a clava e a enfia por entre as pernas daquelle que deve desfechar o golpe mortal.

Isso é por elles considerado uma grande honra. De novo aquelle que deve matar o prisioneiro pega na clava e diz: "Sim, aqui estou, quero te matar, porque os teus tambem mataram a muitos doa meus amigos e os devoraram". Responde-lhe o outro: "Depois de morto, tenho ainda muitos amigos que de certo me hão de[Pg 166] vingar." Então desfecha-lhe o matador um golpe na nuca, os miolos saltam e logo as mulheres tomam o corpo, puchando-o para o fogo; esfollam-no até ficar bem alvo e lhe enfiam um pãozinho por de traz, para que nada lhes escape.

Uma vez esfollado, um homem o toma e lhe corta as pernas, acima dos joelhos, e tambem os braços. Vêm então as mulheres; pegam nos quatro pedaços e correm ao redor das cabanas, fazendo um grande vozerio.

Depois abrem-lhe as costas, que separam do lado da frente, e[Pg 167] repartem entre si; mas as mulheres guardam os intestinos, fervemnos e do caldo fazem uma sopa que se chama Mingau, que ellas e as crianças bebem.

Comem os intestinos e tambem a carne da cabeça; os miolos, a lingua e o mais que houver são para as crianças. Tudo acabado, volta cada qual para sua casa levando o seu quinhão. Aquelle, que foi o matador, ganha mais um nome, e o principal das cabanas risca-lhe o braço com o dente de um animal feroz. Quando sára, fica a marca, e isto é a honra que tem. Depois tem elle, no mesmo dia,[Pg 168] de ficar em repouso, deitado na sua rede e lhe dão um pequeno arco com uma flecha para passar o tempo atirando em um alvo de cêra. Isto é feito para que os braços não fiquem incertos, do susto de ter matado.

Tudo isto vi eu e presenciei.

Elles não sabem contar senão até cinco. Si querem contar mais, mostram os dedos da mão e do pé. Em querendo falar de um numero grande, apontam quatro ou cinco pessoas, indicando quantos dedos da mão e do pé ellas têm.

[Pg 169]

Assando um prisioneiro

[Pg 170]

Comendo um prisioneiro

[Pg 171]

CAPITULO XXIX

Descripção de alguns animaes no paiz

Ha no paiz veados e porcos do matto, de duas qualidades. Uma especie é como a daqui. As outras são pequenas, como porcos novos, e se chamam Taygasu, Dattu[141]; são difficeis de cair nas armadilhas com as quaes os selvagens costumam apanhar caça. Ha tambem macacos de tres especies. Uma especie chama-se Key[142], é a que vem para cá.

Ha mais uma especie a que se chama Acka Key[143] e geralmente anda em grandes bandos, saltando nos arvores e fazendo grande gritaria no matto.

E ha mais uma especie a que se chama Pricki[144]; são vermelhos, têm barbas como os bodes e são do tamanho de um cão regular.

[Pg 172]

Tambem ha uma especie de animal a que chamam Dattu[145]; tem mais ou menos um palmo de altura, e couraça no corpo todo, excepto na barriga onde não a tem. A couraça é como chifre e fecha com articulações como uma armadura. Tem focinho longo e pontudo e cauda comprida. Gosta de andar por entre as pedras; a sua comida são formigas e tem carne gorda, que muitas vezes comi.


CAPITULO XXX

Serwoy

Ha tambem uma especie de caça a que se chama Serwoy[146], do tamanho de um gato branco, de pelle parda, tambem cinzento e tem rabo como o gato. Quando pare, pare um ou seis filhos e tem uma fenda no ventre de perto de palmo e meio de comprido. Por dentro da fenda ha mais uma pelle, pois que o ventre não lhe é aberto e por dentro da bolsa estão as tetas. Por onde quer que vá, leva comsigo os filhos dentro do sacco, entre as duas pelles. Muitas vezes, ajudei a apanhai-a e lhe tirei os filhos da bolsa.


[Pg 173]

CAPITULO XXXI

Ha tambem muitos tigres no paiz, que matam gente e causam muitos prejuizos

Ha tambem uma especie de leão, a que chamam Leoparda[147], isto é Leão Pardo, e outros muitos animaes singulares.

Ha um animal chamado Catiuare[148], que vive em terra e tambem na agua. Alimenta-se da tabúa que se encontra nas aguas doces. Quando se amedronta foge para o fundo d'agua. São maiores do que um cordeiro, e tem a cabeça parecida com a da lebre, porém maior, e as orelhas curtas. A cauda é pequena e as pernas são um pouco altas. Correm muito em terra, de uma agua para outra. Tem o pello pardo-escuro, tres unhas em cada pé e a carne tem o gosto da de porco.

Tambem ha uma especie de grandes lagartos na agua[149] e em terra; estes são bons para se comer.


CAPITULO XXXII

De uma especie de insectos pequenos como pulgas pequenas, que os selvagens chamam "attun"

Ha uns insectosinhos parecidos com pulgas, porém menores, que se chamam Attun[150], na lingua dos selvagens. Criam-se nas cabanas, da sujeira da gente. Entram nos pés; só[Pg 174] produzindo uma cocegazinha quando entram, e vão penetrando na carne de modo que quasi não se percebe. Não se reparando e não os tirando logo, põem elles um sacco de ovos, redondo como uma ervilha. Uma vez, porém, percebidos e retirados, fica na carne um buraco do tamanho de um grão de ervilha. Eu vi, quando cheguei a este paiz, pela primeira vez, os espanhóes e alguns dos nossos ficarem com os pés estragados por descuido.


CAPITULO XXXIII

De uma especie de morcego do paiz, e como de noite, durante o somno, elle chupa os dedos do pé e a cabeça da gente

Ha tambem uma especie de morcegos, que são maiores do que os da Allemanha. Vôam de noite para dentro das cabanas, ao redor das redes, em que dorme a gente. Tanto que percebem que alguem dorme e os não inquieta, pousam-lhe nos pés e os sugam até se encherem, ou mordem-lhe a cabeça, e se vão embora.

Emquanto estive entre os selvagens, sugaram-me muitas vezes os dedos do pé. Ao accordar é que via então os dedos ensanguentados. Mas, aos selvagens, mordiam-lhes em geral a cabeça.


CAPITULO XXXIV

Das abelhas do paiz

Tres especies de abelhas ha no paiz. As primeiras são semelhantes as daqui. As segundas são pretas e do tamanho de moscas. As terceiras são pequenas, como mosquitos. Todas estas abelhas fabricam o mel no ôco das arvores, e muitas vezes tirei mel com os selvagens de todas as tres especies. As pequenas têm, em geral, melhor mel que as outras. Tambem não mordem como as[Pg 175] abelhas daqui. Vi, muitas vezes, ao tirarem mel os selvagens, que ficavam cheios de abelhas e que a custo as tiravam á mão do corpo nú. Eu mesmo tirei mel, nú; mas da primeira vez fui coagido pela dôr a metter-me na agua e tiral-as ali para me livrar dellas.


CAPITULO XXXV

Dos passaros do paiz

Ha tambem muitos passaros singulares ali. Uma especie chamada Uwara Pirange[151] tem seus pastos perto do mar e se aninha nas rochas, junto á terra. Tem o tamanho de uma gallinha, bico comprido e pernas como as da garça, mas não tão compridas. As primeiras pennas que sáem nos filhotes são pardacentas e com ellas vôam um anno; mudam então essas pennas e todo o passaro fica tão vermelho quanto possivel, e assim persiste. As suas pennas são muito estimadas pelos selvagens.


CAPITULO XXXVI

Descripção de algumas arvores do paiz

Ha ali arvores a que os selvagens chamam Junipappceywa[152]. Estas arvores dão uma fructa semelhante á maçã. Os selvagens mastigam esta fructa, expremem o succo em uma vasilha e se pintam com elle. Quando o passam pela primeira vez na pelle, é como a agua; mas dahi a pouco, fica-lhes a pelle tão preta como tinta; isto dura até o nono dia e só então é que se desmancha, e nunca antes deste tempo, por mais que se lave.


[Pg 176]

CAPITULO XXXVII

Como crescem o algodão e a pimenta do Prasil, e tambem algumas outras raízes mais, que os selvagens plantam para comer

O algodão dá em arbustos da altura de mais ou menos uma braça; tem muitas ramas e, quando floresce, dá botões, que, uma vez maduros, se abrem e o algodão se vê então dentro dos casulos, ao redor de uns carocinhos pretos, que são as sementes, as mesmas que se plantam. Os arbustos estão cheios destes casulos.

A pimenta da terra é de duas qualidades, uma amarella e outra vermelha, mas ambas crescem da mesma maneira. Emquanto verdes, são como o fructo da roseira de espinhos; são pequenos arbustos mais ou menos de meia braça de alto e tem florinhas. Ficam muito carregados de pimentas, das que ardem na boca. Quando maduras, colhem-nas e seccam-nas ao sol. Ha tambem uma especie de pimenta miúda, não muito differente da já mencionada, e que seccam do mesmo modo.

Ha tambem umas raízes a que chamam Jettiki[153], que têm bom gosto. Quando plantam estas, cortam-nas em pedaços pequenos, e as enterram no chão, onde brotam e se estendem pela terra, como as ramas do lupulo, enchendo-se de tuberculos.


DISCURSO FINAL

Ao leitor deseja Hans Staden a graça e a paz de Deus

Bondoso leitor:—Propositalmente descrevi esta minha viagem e navegação com a maior brevidade, sómente para contar como, pela primeira vez, caí no poder dos povos barbaros. E para mostrar como, poderosamente e contra toda espectativa, o Salvador, nosso Senhor e Deus, todo poderoso, ainda maravilhosamente[Pg 177] protege e encaminha os seus fieis entre os povos impios e pagãos, como elle sempre tem feito. E tambem para que cada um seja grato a Deus e confie nelle na desgraça, porque elle mesmo diz: "Invoca-me no tempo da necessidade, para que eu te salve, e tu me louvarás, etc."

Agora muitos poderão dizer que, si eu quizesse mandar imprimir tudo que experimentei na minha vida e vi, teria de fazer um grande livro. É verdade; deste modo, teria eu tambem ainda muito que descrever; mas, este não é o caso. Eu estou certo de que o que me fez escrever este livrinho, já tenho sufficientemente demonstrado, é que somos todos obrigados a louvar e agradecer a Deus que nos preservou desde as primeiras horas do nascimento até a hora presente da nossa vida. Ainda mais: Posso tambem pensar que o conteúdo deste livrinho pareça extranho a alguns. Quem tem culpa disso? Não sou o primeiro e não serei o ultimo a ter conhecimento de taes navegações, terras e povos. E não hão de rir-se daquelles a quem isso aconteceu, nem daquelles a quem ainda pode acontecer.

Mas pretender que aquelle que se quer libertar da vida para a morte esteja no mesmo estado de espirito que aquelle que está longe e só vê ou ouve dizer; isto cada qual que julgue melhor por si.

E si todos os que navegam para a America tivessem de cair nas mãos de inimigos barbaros, quem desejaria lá ir?

Mas disto estou certo, que muita gente honesta em Castella, Portugal, França e alguns de Antdorff, em Brabant, que tenham estado na America, hão de dar o testemunho de que tudo é como eu aqui o descrevo.

Para aquelles, porém, que não conhecem estas coisas, chamo em primeiro logar o testemunho de Deus.

A primeira viagem que fiz á America, foi em um navio portuguez, cujo capitão se chamava Pintyado e eramos tres allemães a bordo. Um era de Bremen e se chamava Heinrich Brant; o segundo chamava-se Hans von Bruchhausen, e eu.

A segunda viagem fil-a eu de Sevilha, em Espanha, para o Rio de Platta, provincia situada na America e assim chamada. O capitão dos navios chamava-se Don Diego de Senabrie. Nenhum[Pg 178] allemão havia nesta viagem. E depois de muitos labores, angustias e perigos, tanto no mar como em terra, durante dois annos, como já disse, naufragámos numa ilha chamada S. Vincente, perto da terra firme no Prasil, habitada por portuguezes. Ahi encontrei um patricio, filho do bemaventurado Eobani Hessi, que me recebeu bem. Havia lá mais um de nome Peter Rösel, que era factor de negociantes de Antdorff, que se chamam os Schetz[154]. Estes dois podem dar testemunho de como cheguei e como fui capturado por barbaros inimigos.

Ainda mais. Os marinheiros que me resgataram dos selvagens eram de Normandia, em França. O capitão do navio era de Wattauilla, chamava-se Wilhelm de Moner. O piloto chamava-se Françoy de Schantz e era de Harflor[155]. O interprete era de Harflor e se chamava Perott. Esta gente honesta (Deus lhe pague na vida eterna) auxiliou-me, depois de Deus, para voltar á França. Arranjaram-me um passaporte, vestiram-me e me deram de comer. Estes podem dar testemunho onde me acharam.

Embarquei depois em Dippaw[156], em França, e fui para Lunden[157] na Inglaterra. Ali agentes de hollandezes souberam do capitão tudo o que me dizia respeito. Convidaram-me para ser seu hospede e me deram dinheiro para viagem. Depois naveguei para a Allemanha.

Em Antdorff, fui á casa de von Oka ter com um negociante chamado Jaspar Schetzen, do qual é factor em S. Vincente o supramencionado Peter Rösel, como já foi referido. A elle dei-lhe a noticia de como os francezes atacaram o barquinho do seu factor em Rio de Jenero[158], mas que tinham sido repellidos. O mesmo[Pg 179] negociante fez-me presente de dois ducados imperiaes. Deus lhe pague, por isso.

Si agora, alguem houver que não fique contente com este escripto, e para que não continue a alimentar duvida, peça o auxilio de Deus e emprehenda a mesma viagem. Dei-lhe já bastante ensino. Siga as pegadas.

A quem Deus ajuda o mundo não está fechado.

Ao Deus todo poderoso, que todo está em tudo, sejam a honra, a gloria e o louvor, de eternidade á eternidade. Amen.


Impresso em Marpurg na terra de Hessen, em casa de Andres Kolben no dia do anniversario Mariae. 1557.


FOOTNOTES:

[1] "A obra appareceu primeiramente em 1556 em Frankfort sobre o Menn, "durch Weygandt Han". Não ha data no livro, mas o prefacio é de 1556 e é de suppor que sendo já Frankfort grande centro bibliographico, e outras edições futuras tendo sahido dali, tambem o fôsse esta. Como as provas foram revistas pelo Dr. Dryander de Marpurgo (o livro tem illustrações em madeira que mal podiam ter sido preparadas ali), é de crer que não se satisfazendo elle com as gravuras que, finas como eram, pouca idéa davam das aventuras de seu heroe, procurasse fazer outra edição em Marpurgo mesmo, e com gravuras mais verdadeiras, se bem que muito toscas. E assim o fez, em 1557." (J. C. Rodrigues, Bibliotheca Brasiliense, Rio, 1907, p. 590).—A. P.

[2] "...lastimo dizer que os numeros 5, 6 e 7 da bibliographia do Sr. Löfgren são mera phantasia". (J. C. Rodrigues, Bibliotheca Brasiliense, Rio, 1907, p. 590).

"Em 1595 appareceu a primeira versão hollandeza (não mencionada por Brunet ou Graesse) e foi reproduzida (sem o prefacio) em 1627 e 1634 (Amsterdam...) nenhuma dellas sendo accusada pelo Sr. Löfgren" (J. C. Rodrigues, op. cit., p. 591).—A. P.

[3] Tuppin Imba é mais uma das muitas formas com que se nos depara o nome tupi do gentio brasilico, dominador na costa ao tempo da conquista. Entre os portuguezes dessa epoca escrevia-se Tupinambá, nome que se vulgarizou. Entre os escriptores francezes contemporaneos lêem-se, porém, Topinamboux, Tapinambós, Toupinambas, e até Tououpinambaoult escreveu João de Lery, graphia que, apezar de extranha, foi considerada por Ferdinand Denis como a mais proxima da verdade. De tão grande diversidade de forma resulta a tão controvertida interpretação do vocabulo que a ninguem satifaz. Tuppin ou Tupin quer dizer tio, o irmão do pai; imba ou imbá = abá, homem, gente, geração. Tambem Tu-upi, significa o pai primeiro, o progenitor. Tu-upi-abá, a geração do progenitor.

[4] Veja-se adiante a nota 2.

[5] Quer dizer estrellas escuras, por uma especie de trocadilho, só possivel na lingua allemã. (O traductor).

[6] Por esse tempo, ainda se não tinha identificado o inteíro continente da America. Os novos descobrimentos, isolados, ou destacados, consideravam-se ilhas. O Brasil de Hans Staden é ainda uma ilha.

[7] Era costume, nessa época, levarem-se criminosoe em degredo para as terras recem-descobertas, afim de aprenderem a lingua dos naturaes e serem uteis depois ao commercio e á navegação.

[8] É o Cabo de Gela na costa de Marrocos, onde está a cidade e praça de Arzilla, cerca da trinta milhas distante de Tanger, e que esteve em poder dos Portuguezes até que D. João III a abandonou.

[9] São os dourados, nome de varias especies de peixes acanthopterygios.

[10] É o peixe voador, como facilmente se deprehende da narrativa.

[11] O nome actual Pernambuco, de procedencia do tupi Paranam-buca, que aos ouridos do narrador soou Pranenbucke. (Vide O Tupi na Geographia Nacional, de Theodoro Sampaio).

[12] A colonia ahi fundada pelos Portugueses era a villa de Olinda, a que o gentio começou a chamar mairy, que quer dizer cidade ou povoação, como a construiam os europeos. Dahi a corruptela Mary ou Marim, como Staden nol-a transmitte.

[13] É o nome estropiado do primeiro donatario da Capitania de Pernambuco. Staden, ignorando o portugues, teria escrípto Arto Koelio, por Duarte Coelho. Os copistas fizeram o resto.

[14] É Igarassú (igara-assú), canôa grande, barco, em vez de Iguarassú, como erroneamente hoje se escreve.

[15] Eram africanos e indios escravos.

[16] Eram os Caetés, moradores das mattas, inimigos dos Potyguaras, alliados dos Portuguezes.

[17] Adoptaram os Portuguezes no Brasil o mesmo processo da defeza usado pelo gentio nas suas aldeias, construindo estacadas ou caiçaras em torno dos povoados mais expostos á injuria dos selvagens.

[18] A ilha de Itamaracá, que o gentio da terra chamava Ipãussu Itamaracá, como Staden escreve no desenho junto, e se traduz—ilha grande de Itamaracá, da Capitania de Pero Lopes de Souza. Na ilha estava a villa de Nossa Senhora da Conceição, cabeça da Capitania, situada na parte meridional a cerca de meia legua acima da foz do rio Igarassú.

[19] É o vocabulo cipó, do tupi çãpó, que vale dizer—corda-vara—, isto é, galho ou ramo em forma de corda. Os selvagens sabiam tirar partido dos cipós nas suas construcções e no fabrico de utensis domesticos.

[20] Deve ser Potiguares, como dizíam os Portugueses, derivado de Poti-guara, papa camarões, appelido de uma nação dos tupis do Nordeste, inimiga dos Caetés. Outros autores escrevem Petiguaras, caso em que o vocabulo se deriva de Pety-guara, e então significa mascador de fumo, porque o selvagem desto nome, segundo A. Knivet, trazia habitualmente entre os labios e os dentes uma folha de fumo, ou tabaco.—O local, chamado pelo narrador—porto dos Buttugaris,—quarenta milhas germanicas para o norte de Igaraçú, deve ser o da Parahyba.

[21] O porto e cidade de Santa Maria em Espanha, fronteira a Cadix, pouco acima da foz do Guadalete.

[22] A cidade de Sevilha na Andalusia.

[23] O Perú, descoberto em 1524 e conquistado por Pizarro.

[24] O porto de San Lucar de Barrameda, na foz do Guadalquevir.

[25] Hoje Superaguy, numa lingua de terra á parte do norte da barra de Paranaguá.

[26] A ilha de S. Vicente fica, em verdade, mais distante do que nol-o diz o narrador, si as suas leguas forem das de vinte ao gráo. Destas contam-se 48 entre os dois pontos.

[27] Jurumirim, nome dado pelos Carijós, habitantes da ilha de Santa Catharina, á boca do norte do canal que separa esta ilha do continente. No tupi,—jurú-mirim, se traduz boca pequena, barra. O navio de Senabria avistou primairo e entrou a barra do sul do canal entre o continente e a ilha, onde ancorou. Navegou no canal como se fôra um rio, cuja corrente subira em um bote, e já proximo da barra do norte é que se encontrou, no porto de Jurumirim dos Carijós, com o europeu que lhe acudira ao signal.

[28] A cidade de Assumpção, no Paraguay, então accesivel pelos portos de Santa Catharina, desde a primeira viagem de D. Alvaro Nuñez Cabeza de Vaca, governador daquella terra.

[29] João de Salazar, um dos companheiros de D. Pedro de Mendoza, na fundação da cidade de Buenos-Aires em 1534.

[30] É do tupi Aguti, ou Acoti, que hoje se diz Cutia, nome do conhecido roedor (Dasyprocta). O nome aguti ou a-cuti, no tupi, quer dizer—aquelle que come de pé, de referencia ao habito do animal deste nome de tomar o alimento com as pattas dianteiras, o que lhe dá, quando come, a attitude erecta.

[31] A provincia do Paraguay, cuja capital, Assumpção, era então o mais prospero estabelecimento dos Espanhóes no Rio da Prata, depois do mallogro de Mendoza em Buenos-Aires. O caminho por terra para Assumpção continuou praticado desde a viagem que por elle fizera D. Alvaro Nuñez Cabeza da Vaca em 1541.

[32] Urbioneme, si procedente do tupi, como o dis Staden, deve ser mui provavelmente Urpióneme que outros escrevem Morpion.

[33] É vocabulo tupi que significa porto, logar na extremidade sul do canal de Santa Catharina, onde ancorou a nau de Senabria. O forte de Imbiassape (mbeaçã-pe) deve ter sido alguma estacada para a defeza das palhoças em que, por dois annos, ahi se abrigou a tripulação.

[34] A ilha dos Alcatrazes, a actual, fica fronteira quasi á ilha de São Vicente. O autor, porém, refere-se aqui a outra ilha muito mais ao sul, distante cerca de 40 milhes do porto donde partira a nau, que ficava a 28º latitude sul e S. Vicente lhe ficava a 70. Guardada a devida proporção para as milhas allemãs, essa ilha dos Alcatrazes pode ser algum dos ilhéos na altura da barra de Paranaguá.

[35] É o porto de Cananéa em S. Paulo, bastante conhecido desde os primeiros tempos do descobrimento. Staden escreve Caninee, o que combina quasi com Canené da graphia de frei Vicente do Salvador na sua Historia do Brasil de 1627, o que faz suppor que esse nome era de primitiva procedencia indigena, isto é, Caninee, Canané, equivalente a Canindé, nome de uma especie de arara.

[36] É a barra de Itanhaem, graphado o nome como soara aos ouvidos de narrador—Itenge-Ehm,—na costa ao Sudoeste de S. Vicente, onde já, nesse tempo, havia um nucleo de colonos portuguezes. O nome indigena procede de itá nhaen, que significa—bacia de pedra,—muito conforme com o aspecto da localidade que é deveras uma bacia rodeada de pedras, das quaes na mais alta está a igreja de N.a S.a da Conceição.

[37] É o mesmo porto de Imbiassape, donde saíra a nau de Senabria para S. Vicente. A graphia do autor é muito incerta nos nomes barbaros. Byasape aqui, Inbiassape no capitulo antecedente. No tupi, como vimos, mbeaçá-pe, de que mais commumente se fez—peaçá-pe, e significa literalmente, no porto ou ao porto.

[38] Orbióneme ou Urbióneme, como no Cap. XII.

[39] Ywawasupe parece corresponder ao vocabulo tupi Iguaguassupe, isto é, iguá-guassú-pe, que vale dizer—no lagamar grande, querendo referirse provavelmente ao canal ou braço grande onde se ergueu depois a cidade de Santos.

[40] Ingenio por Engenho, fabrica de assucar de propriedade do donatario que depois a arrendou a Jorge Erasmo Scheter, e se chamou, por isto,—fazenda do trato—de S. Jorge dos Erasmos.

[41] O gentio Tupiniquim dominava, com effeito, nessa epoca, o litoral paulista na mór parte de sua extensão, partindo ao norte com os Tupinambás do Rio de Janeiro, e ao sul com os Carijós. Desconhecida era a extensão do seu dominio no sertão; o autor, porém, avalia isso em oitenta leguas aproximadamente. Nesse ambito se comprehendiam os Guayanazes, quer os do campo, quer os do matto, os quaes se ligavam por vezes aos Tupiniquins por laços consanguineos, como nol-o transmitte Anchieta. Os Guayanazes não eram, porém, tupis.

[42] Tawaijar, a significar—contrario, ou inimigo, se escreverá no tupí Tobaiguara, que vale dizer—fronteiro, opposto, ou literalmente—individuo em face. Tawaijar, tomado como Tabayar ou Tabayara, quer dizer—senhor de aldeias, aldeiões, moradores de aldeias.

[43] Brickioka é corruptella do nome tupi Piraty-oca, donde procede o actual—Bertioga, nome do canal que separa a ilha de Santo Amaro do continente. O autor teria escripto Britioka e o copista Brikioka, o que deu azo a interpretações diversas. O canal é um excellente abrigo dos cardumes de taínhas (piraty) e o indio quiz significar isso com o nome de Piratyoca que vale dizer—paradeiro das tainhas. O vocabulo tupi piraty evoluiu na dicção portugueza para paraty, donde depois vieram party, barty, berty ou berti que é como ora se vê na composição do nome Bertioga.

[44] Santo Amaro é o nome dado pelos Portuguezes á ilha, vizinha de S. Vicente, a que o gentio chamava Guaybe ou Guaimbé, e que foi o nome da capitania doada a Pero Lopes de Souza na zona do Sul.

[45] Abbati ou avaty é o milho na lingua do gentio tupi.

[46] Kaa wy, é o mesmo cauim, bebida preparada com o milho mastigado e fermentado.

[47] Bratti é o mesmo paraty do gentio, que em portuguez se chama—taínha.

[48] Pirá-kuí é o vocabulo tupi—pirá cuí, que se traduz—farinha de peixe, porque fabricada com o peixe secco e moqueado.

[49] Leia-se engenho, fabrica de assucar no Brasil.

[50] É o nome estropeado do genovez Giusseppe Doria, de que entre os portuguezes se fez—José Adorno, homem emprehendedor e tronco de familia notavel nos primeiros tempos da colonia.

[51] Perot, ou antes Peró, é como o gentio chamava ao portuguez, e ao francez chamava mair. Peró querem alguns que seja uma corrupção do nome Pedro; querem outros, porém, que seja o mesmo vocabulo tupi—piro—que vale dizer—roupa de couro, porque os portuguezes se encouravam para as suas luctas no sertão.

[52] Kawewi pepicke é phrase tupi, o mesmo que cauim pipig, que quer dizer—cauim ferve. O barbaro quiz dizer que mataria, o prisioneiro com solennidade e o cauim havia de ferver.

[53] Uwara é o vocabulo tupi uará ou guará, como o gentio chamava a ave de pennas rosadas, a Ibis rubra.

[54] Por engano, Löfgren traduziu "Rore" por "sarabatana", arma de arremesso de setta hervada, por um tubo, no qual se assoprava, desconhecida dos Indios da costa. Espingarda é o que é, que estes selvagens possuiam por troca com os Francezes. Uma gravura de Staden, a de pagina 55, isto mostra claramente. Esta advertencia que nos fez o sr. Professor Roquette-Pinto, e que acceitamos, confirma-se pela nota que o Prof. Wegner pôs, nesta altura do texto facsimilar de Frankforte: "Rore"—espingarda em cuja posse, ao que parece, estavam os Tupis da costa, em differentes casos isolados. A sarabatana não era usada pelos Tupis da costa do Brasil."—A. P.

[55] O narrador chama rei ao principal da tribu que o aprisionou. Entre os tupis, esse principal era o morubichaba ou tuchaua.

[56] Por esta phrase se vê que o narrador fôra, com effeito, capturado em um ponto da ilha de Santo Amaro, para o lado de dentro dos canaes e lagamares, sendo então conduzido pelos índios através da barra de Bertioga, passando em frente do forte e ao alcance do um tiro de falconete.

[57] Schere inbau ende é phrase tupi alterada e que corresponde a—che remimbab ndê, cuja traducção ao pé da lettra é—meu bicho de criação tú—, isto para significar ao prisioneiro que elle dali em diante era bicho de criação e lhes pertencia.

[58] A phrase tupi é a seguinte: "Ne monghetá ndê Tupan quaabe amanaçú yandê eíma rana mocecy", cuja traducção é: "Pede a teu Deus que aquella tempestade não nos faça mal".

[59] Corrigindo a phrase tupi, diga-se: "Oquara mõ amanaçú", que quer dizer—a tempestade recolhe-se.

[60] A graphia do nome Bertioga é varia nesta narração. Brickioka, Brikioka, etc.

[61] Uwattibi, ou melhor Ubatyba, de que por corrupção se fez Ubatuba.

[62] A phrase tupi restaurada é; "Ayú ichebe enê remiurama", que se traduz—cheguei eu, vosso regalo—ou, em outros termos: "aqui estou para vossa comida".

[63] Ywara deve ser graphia erronea, do tupi Ywirá ou ybirá, que significa—madeira, tranqueira, paus,—material com que o gentio construia a caiçara, ou estacada em torno das suas aldeias.

[64] A phrase tupi deva escrever-se—che anama pipike aé—o se traduz: "meus parentes vingo em ti", que é como se dissessem, ao prisioneiro—"agora me pagarás os meus".

[65] Tammerka, ou antes,—itamaracá—que quer dizer—sino ou chocalho de ferro. O narrador decerto confunde o maracâ com itamaracâ. Este não era objecto do culto do gentio, e sim aquelle, que era tido como sagrado e por isso o enfeitavam e o guardavam em sitio reservado.

[66] Ieppipo Wasu, Alkindar Miri, são nomes um tanto alterados. Ieppipo Wasu pode ser uma leve alteração de Ye-pípo-uaçû, traduzindo-se "esguicho grande". Alkindar Miri parece uma alteração de Aracundá Mirim, papagaio de meneios pequeno.

[67] Ypperu Wasu é o mesmo Ipirú guassú do tupi, e significa—o tubarão grande.

[68] Aprasse é alteração do vocabulo tupi—Aporacé—ou, simplesmente, poracé que quer dizer—"reunião para folguedo ou para dançar".

[69] Uratinge Wasu é alteração do Uiratínga Uaçú, que tambem se escreve Guiratinga guaçú e se traduz—a Garça grande.

[70] Iwera Pemme é do tupi—ibirá-pema—que quer dizer—Pau aplaínado, ou clava achatada, em forma de remo ou de espada. É o nome de um instrumento de guerra, a que o gentio chamava tambem tangapema ou, melhor, tacapema, para dizer—o tacape chato.

[71] Arasoya é o vocabulo tupi—araçoyá, ou araçoyaba, especie de turbante feito de pennas multicôres. Era, em verdade, o chapéo do selvagem em occasiões solennes.

[72] Karwattuware é alteração do tupi—karauatauara (karauatá uara) que quer dizer—comedor de gravatás, isto é, apreciador dos fructos desta bromeliacea.

[73]

Sanctum precemur Spiritum
Vera beare nos fide
Ut nos in hac reservet,
In fine nempe vitae
Hic quando commigramus
Doloribus soluti
Kyrie Eleison.

[74] Arirab, graphia errada de Ariroba ou Ariró, nome da aldeia de Cunhambebe, para os lados de Angra dos Reis. No Estado do Rio de Janeiro, ha o rio Ariró e tambem uma serra com este mesmo nome por aquelles lados.

[75] Konyan-Bebe é o mesmo Cunhambebe, chefe famoso dos Tamoyos, inimigo dos Portuguezes.

[76] Markaya deve ser—Maracayá—nome de uma tribu inimiga dos Tamoyos, vocabulo tupi com que se designa—o gato do matto.

[77] É o ornato de nephrite a que o gentio chamava—Tembetá—isto é, tembé-itá, que vale dizer—pedra do beiço.

[78] No tupi, excremento—tipoty ou repoty. É, porém, de suppor que o vocabulo teuire seja alteração de tebira, que significa—vil, corrupto, infame, ruim. Possivel é, tambem, que proceda de teõuira que vale dizer—"o que é lançado ou tirado do corpo".

[79] Era esse o costume naquelles tempos em que o trafico com o gentio era unico negocio possivel nesta parte da America. Os navios dos contractadores do pau-brasil como as simples naus de resgate, portuguezes ou estrangeiras, empregavam todas o mesmo processo.

[80] Kenrimakuí é alteração de Carimã-cuí, que quer dizer—farinha de carimã, ou pó de carimã.

[81] Scheraeire, diga-se che raíra, que quer dizer—meu filho.

[82] A pimenta (kiínha), chamada cumurí, valia então como uma especiaria da terra. As pennas do guará, da arara, as pelles de tucano e dos felinos eram então muito procurados. O trouchement francez adquiria esses artigos e esperava o barco que os vinha buscar e levar para a Europa.

[83] Mungu Wappe e Iterwenne são de difficil identificação. O primeiro parece ser alteração de Mongaguape e o segundo de Iteruenne, ou talvez Iteronne, mais aproximado de Iteron, que quer dizer—agua em seio, enseada. Aliás, na edição "princeps", lê-se:—Iterroenne. V. nota 82.

[84] Tickquarippe é do tupi Tyquarype, composto de Tyquara-y-pe, que se tradus—n'agua do poço.

[85] A phrase tupi é como se segue: Apomirim jurupary ybytu uaçú omô, que se traduz—"aquelle diabinho é que trouxe o furacão". O diabinho, para os barbaros, era o livro que elles chamavam—couro da trovoada.

[86] Esta referencia do narrador explica bem uma phase originalissima da colonia portugueza de S. Vicente nessa epoca. A cultura nas ilhas, já a esse tempo, fazia-se com caracter exclusivista. Plantava-se a canna para assucar e aguardente e se descurava o mais, ou pelo menos, as terras ali não se prestavam sufficientemente para as outras culturas de mantimento. Dahi vinha que, não obstante o estado de guerra entre portuguezes e tamoyos, o concurso destes não podia ser dispensado por aquelles. Armava-se bem um navio para poder afrontar a sanha do gentio adverso, entrava-se-lhe pelos portos, propondo-lhe negocios ou simples troca de productos de que reciprocamente uns e outros careciam, e a vida na colonia se equilibrava.

[87] Verifica-se por aqui que o nome Iterwenne da pag. 88 é simples alteraçâo de Iteron, ou Iterô, que, como já vimos, quer dizer—bahia, enseada.

[88] Vê-se dahi que o trafico com o gentio se raduzia a bem pouco, além do pau-brasil, isto é, pimenta, macacos e papagaios. Os europeus traziam-lhe em troca instrumentos de ferro, pentes, guizos, anzóes, panno ordinario, espelhos.

[89] Eram, na verdade, enormes as canôas dos Tamoyos feitas de um tronco enteiriço. A força da esquadra de guerra, como aqui se vê, era respeitavel, subia a 684 homens, sinão mais.

[90] Difficil é aqui restaurar a graphia deste vocabulo. Admittindo-se que seja uma alteração de çoópiracaen, o sentido do vocabulo seria:—"peixe secco de sustento ou de mantimento".

[91] É o rio Parnhyba do Sul.

[92] É Maembipe, que significa—no estreito—, mais de referencia ao canal, que separa a ilha do continente, do que a esta.

[93] Parwaa é certamente—Parauá—que significa papagaio.

[94] Daqui se deprehende que os idolos dos Tupinambás de Cunhambebe, a que, por mais de uma vez, Staden se refere, eram os maracás, chocalhos feitos de uns cabaços contendo seixos ou sementes, o que o gentio costumava de ornar com as pennas multicores de maior preço. Esses maracás, tinham-n'os elles em cabana á parte, á guisa de santuario.

[95] Ainda hoje é essa montanha chamada Ocaruçú—formando assignalado promontorio, á parte de sudoeste da grande bahia de Paraty. O nome tupi—Ocaruçú—quer dizer—terreiro ou praça grande—e a aldeia de Cunhambebe ficava-lhe para o interior, no reconcavo dessa bahia.

[96] A phrase tupi é emphatica e está mal escripta. O narrador quiz dizer—Youara ichê!—que te traduz—sou onça!

[97] Tatamirí, ou Tatá-mirim, que quer dizer—foguinho—ou lumezinho.

[98] Por onde se vê que o commercio dos francezes com o gentio da costa do Brasil era então regular e frequente, e que, naquelles primeiros annos da conquista, a influencia, franceza entre os selvagens era incontestavel.

[99] Tackawara sutibi é aqui o mesmo que Taquaruçutyba, e significa—sitio dos taquaruçús.

[100] Abbati Bossange é alteração do tupi—Abati-possanaga, e quer dizer—caldo de milho, ou remedio feito de milho.

[101] A bahia do Rio de Janeiro, a esse tempo, estava virtualmente em poder dos francezes. No anno seguinte (1555) ao desta narração, Villegagnon fortificava-se num ilhéo dentro dessa formosa bahia.

[102] Frequentes eram então os naufragios em aguas do Brasil; este agora de que nos fala o narrador era já o sexto dos occorridos para o sul do Cabo Frio, e mencionados pelo resignado prisioneiro dos Tamoyos.

[103] Sowarasu, ou antes, çoóguara-açú,—o "grande comedor da caça", ou o "comilão".

[104] Os Markayas, ou melhor, os Maracayás, ao fundo da bahia do Rio de Janeiro, eram vizinhos e inimigos dos Tupinambás (Tuppin Inbas) e não Tupinikins (Tuppin Ikins), como está na narração. No desenho (p. 120), porém, onde vêm figuradas as tribus do reconcavo dessa bahia, a incorrecção desapparece. Lá estão representadas as aldeias dos Maracayás e dos Tuppin Inbas como vizinhos, o que basta para desfazer o engano do narrador.

[105] As ilhas de Cabo Verde, do nome do cabo que se acha na costa africana, habitada por mouros negros.

[106] O narrador aqui se refere á Guiné.

[107] O Tropico de Cancer.

[108] Innumeras eram as primitivas nações selvagens do Brasil e as suas linguas muito differentes umas das outras. A mais espalhada era a lingua tupi, falada no littoral.

[109] Especie de camisa sem mangas e sem talhe, verdadeiro sacco com os furos precisos para passar a cabeça e os braços. Chamava-se tipoy no tupi, depois luzitanisado em tipoia.

[110] Até a epoca do captiveiro de Hans Staden entre os Tupinambás, o nome—America—só era usado para designar a parte do continente que é hoje o Brasil.

[111] É a Bahia de Todos os Santos, onde já os Portuguezes, em 1549, tinham edificado a cidade do Salvador para cabeça da sua colonia no Novo Mundo.

[112] Wayganna—quer o narrador dizer—Guayanã—nome de uma nação selvagem que habitava as mattas da serra, entremettida entre Tamoyos ou Tupinambás, Tupinikins e Carijós. Anchieta assignala—Guayanãs do matto e Guayanãs do campo; mas não os tem na conta de ferocidade em que os descreve aqui o narrador. O jesuita e o autor do Roteiro do Brasil divergem de Hans Staden no descreverem a indole e caracter desses indios.

[113] Esse grande rio Paracibe é mui provavelmente o nosso Parahyba, cujas cabeceiras confrontam com o trecho do litoral occupado pelos Tupinambás (Tuppin Inba), de que nos fala o narrador.

[114] Refere-se aqui o narrador ao gentio Guaytacá, que dominava o baixo Parahyba. O nome tupi é contracção de Goatacora que quer dizer—o andejo, o nomada, errante.

[115] Karaya é, decerto, Carayá, gentio do sertão e de raça não tupi de que hoje só temos noticia no valle do Araguaya.

[116] Vrakueiba, mui provavelmente do tupi—Bracuyba, ou melhor—ybyrá-acú-yba, que se traduz—"arvore de madeira quente", isto é, que dá fogo.

[117] Inni é a rêde de dormir, a maca.

[118] Ingange é do tupi—inhang ou anhanga, que outros escrevem anhan, e significa propriamente—"o genio ou espirito vagabundo, o ser errante".

[119] Esse modo de pescar do gentio ainda hoje é usado peia população do interior.

[120] Keinrima é do tupi carimã, ainda hoje conhecido e empregado pelo vulgo para designar a massa da mandioca puba.

[121] Byyw é do tupi—mbeyú, que vale dizer o enroscado, o enrolado. Hoje vulgarmente—beijú.

[122] V y than, diga-se uytã—que significa—farinha dura.

[123] Yneppaun é do tupi—nhaen-puna, ou yapuna, que significa forno, ainda usado para cozer a farinha de mandioca.

[124] São as nossas cuias, feitas dos cascos das cabaças ou cuités.

[125] Mockaein do tupi—mbocaen, que quer dizer—tostar, seccar ao fogo. Chamavam os selvagens mocaen ao apparelho feito de varas que servia de grelha. A carne assada no mocaen tomara-lhe assim o nome. Hoje é vulgar o nome moquem com o mesmo sentido.

[126] Meire Humane, mui provavavelmente Maír Zumone, nome de mysteriosa personagem, que é tradição ter apparecido entre os selvagens e lhes serviu de legislador e mestre. O gentio do Brasil chamava-o Sumé ou Zumé. No Paraguay, Pay Zomé.

[127] Kanittare é do tupi—acanitara, ou acangatara, que quer dizer—ornato da cabeça.

[128] Matte pue, do tupi—Uatapú, nome com que o gentio designava um búzio grande e de grande bôca, que forado pelo fundo dava para se tanger com elle e que soava muito mais do que uma buzina. Da casca desse búzio fabricava o selvagem um ornato em forma de meia lua.

[129] Bogessy é provavelmente do tupi—mbojacy, que quer dizer—feito lua, ou á imagem da lua.

[130] Krimen, Hermittan, Koem, são tres nomes de procedencia tupi; mas alterados. É possivel que se identifiquem respectivamente com Kirimá, Eiramitã, Coema, que se traduzem na mesma ordem: Corajoso, Abelha menina, Manhã.

[131] Paygi, do tupi—payé ou pagé, que é como o gentio chamava os scus feiticeiros ou adivinhos.

[132] Bittin é do tupi—petym, que quer dizer—tabaco, fumo.

[133] Yga Ywera, do tupi—Ygá-ybyrá, que quer dizer—pau ou madeira de canôa.

[134] Dete Immoraya shermiurama beiwoe, phrase que se restaura pela forma seguinte:—ndê t'mbaeraba che remiá-rama mae amboe, que se traduz litteralmente: "a ti succeda, oh! comida minha, coisa má!" Apostrophe com que se ameaça de fazer do inimigo a sua comida, isto é, de devoral-o.

[135] De kange yuca cypota kurine, que vale dizer:—ndê canga jucá c'ypotá curimé, que se traduz:—"tua cabeça cortar quero já!"

[136] Sche innam me pepicke keseagu, que vale dizer no tupi:—che y anama pepike ki chaicú—e se traduz ao pé da letra: "os meus parentes vingar aqui estou cu".

[137] Yande soo sche mocken scra quora ossorime rire, que vale dizer no tupi: Rendê coó che mocaen será coaracy eyma riré—e se traduz: "a tua carne moquearei decerto depois do sol posto".

[138] Pratti é o mesmo Bratti como o escreveu o narrador anteriormente, nome do peixe a que o gentio chamara paraty, isto é, a tainha.

[139] Pirakaen é o tupi pirá caen, que significa—peixe secco—. Como a epoca da desóva era tambem o tempo da pescaria e da sécca do peixe, o narrador usa do termo pirá caen nos dois sentidos.

[140] Tiberaun, do portuguez—tubarão—alterado; é o peixe a que chamam no tupi—Yperú.

[141] Taygasu, Dattu, do tupi—Taytitú, Tatú, que hoje se chama vulgarmente—Caetetú e Tatú.

[142] Key é do tupi—Cay ou cahy.

[143] Acka Key, do tupi—aca cay, ou aca cahy, que quer dizer—macaco de algazarra ou de bando.

[144] Pricki, do tupi Buriki, nome de uma especie de macaco vermelho, donde Frei Gaspar da Madre de Deus fez derivar a palavra Bertioga, que para o autor das "Memorias para Historia da Capitania de S. Vicente" é uma corruptella de Buriquioca, refugio de macacos.

[145] Dattú, do tupi—Tatú.

[146] Serwoy, do tupi—Soriguê, ou çoó-r-iguê, que quer dizer—animal de sacco, ou dotado de bolso. Em outros logares diz-se—sarué, seruê.

[147] Leopardo, isto é, "Leão pardo", como diz o narrador, não é aqui nome dado pelo gentio, mas pelos portuguezes. O nome tupi é çoó-assú-arana, ou mais contractamente sussuara, que vale dizer—tirando a veado—, nome dado á onça parda.

[148] Catiuare, do tupi—capiuara, hoje capivara, que significa comedor de capim, ou herbivoro.

[149] O autor aqui quer se referir aos saurios brasileiros; ao lagarto d'agua chamava o gentio—yacaré e ao de terra—teyú-assú.

[150] Attun, do tupi—tum ou tung, "o bicho de pé", que tambem se diz tumbyra.

[151] Uwara Pirange é do tupi—Uirá-piranga, isto é: "o passaro vermlho". (Ibis Rubra).

[152] Junipappceywa, do tupi Genipapayba, a arvore do genipapo.

[153] Jettiki, do tupi—getica—a nossa batata indigena.

[154] Já nesse tempo o primeiro engenho de assucar mandado construir pelo donatario de S. Vicente e que por essa razão, em alguns velhos documentos, se chamou—engenho do Senhor Governador ou fazenda do trato, era propriedade da familia de Jorge Erasmo Schetzen, que ahi se fazia representar por um feitor. Desde então começou a denominar-se—engenho dos armadores ou de S. Jorge dos Erasmos.

[155] Harflor, isto é, Honfleur.

[156] Dieppe.

[157] Londres.

[158] Rio de Janeiro.


BIBLIOTECA DE CULTURA NACIONAL

(Publicações da Academia Brazileira)

CLASSICOS BRAZILEIROS

I—Literatura

Publicados:

1—Prozopopéa, de Bento Teixeira, 1928.

2—Primeiras Letras (Cantos de Anchieta. O Dialogo, de João de Lery. Trovas indijenas), 1923.

3—Muzica do Parnasso.A Ilha de Maré—de Manuel Botelho de Oliveira, 1929.

4—Obras, de Gregorio de Mattos:
I —Sacra, 1929.
II—Lírica, 1923.
III—Gracioza, 1930.
IV—Satirica, 2 vols., 1930.

A publicar-se:

5—Dialogo das Grandezas do Brazil.

6—Obras, de Euzebio de Mattos.

7—Obras, de Antonio de Sá.

8—O Peregrino da America, de Nuno Marques Pereira, 2 vols.

9—A Semana, de Machado de Assis (2a série).

10—Discursos Politicos-morais, de Feliciano Joaquim de Souza Nunes.

11—Escritos, de Arthur de Oliveira.

12—Cronicas e Versos, de Adelino Fontoura.

II—Historia

Publicados:

1—Tratado da Terra do Brazil.Historia da Provincia Santa Cruz—de Pero de Magalhães Gandavo, 1924.

2—Hans StadenViajem ao Brazil (revista e anotada por Theodoro Sampaio), 1930.

A publicar-se:

3—Primeiros Documentos (Cartas de Pero Vaz de Caminha, Mestre João, Americo Vespucio, etc.).

[The end of Viagem ao Brasil by Hans Staden]