Notas de transcrição:
Foram feitas correcções adicionais que não vinham na errata:
Índice:
Versos póstumos publicados pela primeira vez com a 2.ª Edição da «Charneca em Flor», em 1931.
Ao Amigo Vindo da luminosa Itália, a minha cidade, como eu soturna e triste...
Évora! Ruas ermas sob os céus
Côr de violetas roxas... Ruas frades
Pedindo em triste penitência a Deus
Que nos perdôe as míseras vaidades!
Tenho corrido em vão tantas cidades!
E só aqui recordo os beijos teus,
E só aqui eu sinto que são meus
Os sonhos que sonhei noutras idades!
Évora!... O teu olhar... o teu perfil...
Tua bôca sinuosa, um mês de Abril,
Que o coração no peito me alvoroça!
...Em cada viela o vulto dum fantasma...
E a minh'alma soturna escuta e pasma...
E sente-se passar menina-e-moça...
[Pg 146]
Janela antiga sôbre a rua plana...
Ilumina-a o luar com seu clarão...
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poético balcão...
Dantes! Da minha glória altiva e ufana,
Talvez... Quem sabe?... Tonto de ilusão,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcão...
Mística dona, em outras primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado...
Bandeiras! Pagens! O pendão real!
E na tua mão, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!...
[Pg 147]
Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ansia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!
Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...
Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...
Mas se eu pudesse, a mágoa que em mim chora,
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...
[Pg 148]
Passo triste na vida e triste sou
Um pobre a quem jamais quiseram bem!
Um caminhante exausto que passou,
Que não diz onde vai nem donde vem.
Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém
A flor da minha bôca desdenhou!
Solitário convento onde ninguém
A silenciosa cela procurou!
E eu quero bem a tudo, a tôda a gente!...
Ando a amar assim, perdidamente,
A acalentar o mundo nos meus braços!
E tem passado, em vão, a mocidade
Sem que no meu caminho uma saüdade
Abra em flores a sombra dos meus passos!
[Pg 149]
Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.
Amo a hera que entende a voz do muro,
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.
Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!
Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...
[Pg 150]
Ao vélho amigo João.
Para quê ser o musgo do rochedo
Ou urze atormentada da montanha?
Se a arranca a ansiedade e o mêdo
E êste enleio e esta angústia estranha
E todo êste feitiço e êste enrêdo
Do nosso próprio peito? E é tamanha
E tão profunda a gente que o segrêdo
Da vida como um grande mar nos banha?
P'ra que ser asa quando a gente voa
De que serve ser cântico se entoa
Tôda a canção de amor do Universo?
Para quê ser altura e ansiedade,
Se se pode gritar uma Verdade
Ao mudo vão nas sílabas dum verso?
[Pg 151]
Um sonho alado que nasceu um instante,
Erguido ao alto em horas de demência...
Gotas de água que tombam em cadência
Na minh'alma tristíssima, distante...
Onde está êle o Desejado? O Infante?
O que há de vir e amar-me em doida ardência?
O das horas de mágoa e penitência?
O Príncipe Encantado? O eleito? O Amante?
E neste sonho eu já nem sei quem sou...
O brando marulhar dum longo beijo
Que não chegou a dar-se e que passou...
Um fogo-fátuo rútilo, talvez...
E eu ando a procurar-te e já te vejo!...
E tu já me encontraste e não me vês!...
[Pg 152]
É primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!
Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!
Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...
Pus rosas côr de rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...
[Pg 153]
Silêncio, meu Amor, não digas nada!
Cai a noite nos longes donde vim...
Tôda eu sou alma e amor, sou um jardim,
Um pátio alucinante de Granada!
Dos meus cílios a sombra enluarada,
Quando os teus olhos descem sôbre mim,
Traça trémulas hastes de jasmim
Na palidez da face extasiada!
Sou no teu rosto a luz que o alumia,
Sou a expressão das tuas mãos de raça,
E os beijos que me dás já foram meus!
Em ti sou Glória, Altura e Poesia!
E vejo-me—milagre cheio de graça!—
Dentro de ti, em ti igual a Deus!...
[Pg 154]
Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,
Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;
Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!
E ao sentir-te tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!
Outubro, 1930.
Chuva... Que gotas grossas!... Vem ouvir:
Uma... duas... mais outra que desceu...
É Viviana, é Melusina, a rir,
São rosas brancas dum rosal do céu...
Os lilazes deixaram-se dormir...
Nem um frémito... a terra emmudeceu...
Amor! Vem ver estrêlas a cair:
Uma... duas... mais outra que desceu...
Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,
Que essa fala de amor seja um gemido,
Um murmúrio, um soluço, um ai desfeito...
Ah, deixa à noite o seu encanto triste!
E a mim... o teu amor que mal existe,
Chuva a cair na noite do meu peito!
[Pg 156]
Só Schumann, meu Amor! Serenidade...
Não assustes os sonhos... Ah, não varras
As quimeras... Amor, senão esbarras
Na minha vaga imaterialidade...
Liszt, agora o brilhante; o piano arde...
Beijos alados... ecos de fanfarras...
Pétalas dos teus dedos feitos garras...
Como cai em pó de oiro o ar da tarde!
Eu olhava para ti... «é lindo! Ideal!»
Gemeram nossas vozes confundidas.
—Havia rosas côr de rosa aos molhos—
Falavas de Liszt e eu... da musical
Harmonia das pálpebras descidas,
Do ritmo dos teus cílios sôbre os olhos...
[Pg 157]
Não se acende hoje a luz... Todo o luar
Fique lá fora. Bem Aparecidas
As estrêlas miüdinhas, dando no ar
As voltas dum cordão de margaridas!
Entram falenas meio entontecidas...
Lusco-fusco... um morcego a palpitar,
Passa... torna a passar... torna a passar...
As coisas tem o ar de adormecidas...
Mansinho... Roça os dedos p'lo teclado,
No vago arfar que tudo alteia e doira,
Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!
E, emquanto o piano a doce queixa exala,
Divina triste, a grande sombra loira,
Vem para mim da escuridão da sala...
[Pg 158]
Vejo-te só a ti no azul dos céus.
Olhando a nuvem de oiro que flutua...
Ó minha perfeição que criou Deus
E que num dia lindo me fêz sua!
Nos vultos que diviso pela rua,
Que cruzam os seus passos com os meus...
Minha bôca tem fome só da tua!
Meus olhos têm sêde só dos teus!
Sombra da tua sombra, doce e calma,
Sou a grande quimera da tua alma
E, sem viver, ando a viver contigo...
Deixa-me andar assim no teu caminho
Por tôda a vida, Amor devagarinho,
Até a morte me levar consigo...
[Pg 159]
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha bôca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor!
Que te seja propicio o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a terra e o mar,
P'los séculos dos séculos sem-par,
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor!
Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,
E, de mãos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de oiro e de veludo.
Ah, êsse verso imenso de ansiedade,
Êsse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por tôda a Eternidade!...
[Pg 160]
Ser uma pobre morta inerte e fria,
Hierática, deitada sob a terra,
Sem saber se no mundo há paz ou guerra,
Sem ver nascer, sem ver morrer o dia,
Luz apagada ao alto e que alumia,
Bôca fechada à fala que não erra,
Urna de bronze que a Verdade encerra,
Ah! Ser Eu essa morta inerta e fria!
Ah, fixar o efémero! Êsse instante
Em que o teu beijo sôfrego de amante
Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro;
Ah, fixar o momento em que, dolente,
Tuas pálpebras descem, lentamente,
Sôbre a vertigem dos teus olhos de oiro!
[Pg 161]
No fadário que é meu, neste penar,
Noite alta, noite escura, noite morta,
Sou o vento que geme e quere entrar,
Sou o vento que vai bater-te à porta...
Vivo longe de ti, mas que me importa?
Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear
Em roda à tua casa, a procurar
Beber-te a voz, apaixonada, absorta!
Estou junto de ti e não me vês...
Quantas vezes no livro que tu lês
Meu olhar se poisou e se perdeu!
Trago-te como um filho nos meus braços!
E na tua casa... Escuta!... Uns leves passos...
Silêncio, meu Amor!... Abre! Sou eu!...
[Pg 162]
Êste querer-te bem sem me quereres,
Êste sofrer por ti constantemente,
Andar atrás de ti sem tu me veres
Faria piedade a tôda a gente.
Mesmo a beijar-me a tua bôca mente...
Quantos sangrentos beijos de mulheres
Poisa na minha a tua bôca ardente,
E quanto engano nos seus vãos dizeres!...
Mas que me importa a mim que me não queiras,
Se esta pena, esta dor, estas canseiras,
Êste mísero pungir, árduo e profundo
Do teu frio desamor, dos teus desdens,
E, na vida, o mais alto dos meus bens?
É tudo quanto eu tenho neste mundo?
[Pg 163]
Rasga êsses versos que eu te fiz, Amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde fôr!
Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada dum momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!...
Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente...
Rasga os meus versos... Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fôsse o mesmo amor de tôda a gente!...
[Pg 164]
O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Céguinho de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!
Bem estava a sentir que êle morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...
Eu bem sei, meu Amor, que p'ra viver
São precisos amores, p'ra morrer
E são precisos sonhos p'ra partir.
Eu bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
Doutro amor impossível que há de vir!
[Pg 165]
Sôbre mim, teu desdém, pesado jaz
Como um manto de neve... Quem dissera
Porque tombou em plena primavera
Tôda essa neve que o inverno traz!
Coroavas-me 'inda há pouco de lilás
E de rosas silvestres... quando eu era
Aquela que o Destino prometera
Aos teus rútilos sonhos de rapaz!
Dos beijos que me deste não te importas,
Asas paradas de andorinhas mortas...
Fôlhas de outono em correria louca...
Mas 'inda um dia, em mim, ébrio de côr,
Há de nascer um roseiral em flor
Ao sol de primavera doutra bôca!
[Pg 166]
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Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser
Há de ser luz do sol em tardes quentes;
Nos olhos de água clara há de trazer
As fúlgidas pupilas dos videntes!
Há de ser seiva no botão repleto,
Voz no murmúrio do pequeno insecto,
Vento que enfuna as velas sôbre os mastros!...
Há de ser Outro e Outro num momento!
Fôrça viva, brutal, em movimento,
Astro arrastando catadupas de astros!
[Pg 167]
Neste mundo vaidoso o amor é nada,
É um orgulho a mais, outra vaidade,
A coroa de loiros desfolhada
Com que se espera a Imortalidade.
Ser Beatriz! Natércia! Irrealidade...
Mentira... Engano de alma desvairada...
Onde está dêsses braços a verdade,
Essa fogueira em cinzas apagada?...
Mentira! Não te quis... não me quiseste...
Eflúvios subtis dum bem celeste?
Gestos... palavras sem nenhum condão...
Mentira! Não fui tua... não! Sòmente...
Quis ser mais do que sou, mais do que gente,
No alto orgulho de o ter sido em vão!...
[Pg 168]
Áquele que se perdera no caminho...
Sóror Saüdade abriu a sua cela...
E, num encanto que ninguém traduz,
Despiu o manto negro que era dela,
Seu vestido de noiva de Jesus.
E a noite escura, extasiada, ao vê-la,
As brancas mãos no peito quási em cruz,
Teve um brilhar feérico de estrêla
Que se esfolhasse em pétalas de luz!
Sóror Saüdade olhou... Que olhar profundo
Que sonha e espera?... Ah como é feio o mundo,
E os homens vãos!—Então, devagarinho,
Sóror Saüdade entrou no seu convento...
E, até morrer, rezou, sem um lamento,
Por Um que se perdera no caminho!...
[Pg 169]
Êsse de quem eu era e que era meu,
Que foi um sonho e foi realidade,
Que me vestiu a alma de saüdade,
Para sempre de mim desapar'ceu.
Tudo em redor então escureceu,
E foi longínqua tôda a claridade!
Ceguei... tateio sombras... Que ansiedade!
Apalpo cinzas porque tudo ardeu!
Descem em mim poentes de Novembro...
A sombra dos meus olhos, a escurecer...
Veste de roxo e negro os crisantemos...
E dêsse que era meu já me não lembro...
Ah, a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!...
[Pg 170]
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sêdas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de insónia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a ennegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
Ó pavoroso mal de ser sòzinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!
[Pg 171]
Deixai entrar a Morte, a iluminada,
A que vem para mim, p'ra me levar.
Abri tôdas as portas par em par
Como asas a bater em revoada.
Que sou eu neste mundo? A desherdada,
A que prendeu nas mãos todo o luar,
A vida inteira, o sonho, a terra, o mar,
E que, ao abri-las, não encontrou nada!
Ó Mãe! Ó minha Mãe, p'ra que nasceste?
Entre agonias e em dores tamanhas
P'ra que foi, dize lá, que me trouxeste
Dentro de ti?... P'ra que eu tivesse sido
Sòmente o fruto amargo das entranhas
Dum lírio que em má hora foi nascido!...
[Pg 172]
Morte, minha Senhora Dona Morte,
Tão bom que deve ser o teu abraço!
Lânguido e doce como um doce laço
E como uma raiz, sereno e forte.
Não há mal que não sare ou não conforte
Tua mão que nos guia passo a passo,
Em ti, dentro de ti, no teu regaço
Não há triste destino nem má sorte.
Dona Morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
Vim da Moirama, sou filha de rei,
Má fada me encantou e aqui fiquei
À tua espera... quebra-me o encanto!
[Pg 173]
Nas nossas duas sinas tão contrárias
Um pelo outro somos ignorados:
Sou filha de regiões imaginárias,
Tu pisas mundos firmes já pisados.
Trago no olhar visões extraordinárias
De coisas que abracei de olhos fechados...
Em mim não trago nada, como os párias...
Só tenho os astros, como os desherdados...
E das tuas riquezas e de ti
Nada me deste e eu nada recebi,
Nem o beijo que passa e que consola.
E o meu corpo, minh'alma e coração
Tudo em risos poisei na tua mão!...
...Ah, como é bom um pobre dar esmola!...
Êste soneto e os seguintes são publicados pela primeira vez em volume.
Há nos teus olhos de oiro um tal fulgor
E no teu riso tanta claridade,
Que o lembrar-me de ti é ter saüdade
Duma roseira brava tôda em flor.
Tuas mãos foram feitas para a dor,
Para os gestos de doçura e piedade;
E os teus beijos de sonho e de ansiedade
São como a alma a arder do próprio amor!
Nasci envolta em trajes de mendiga;
E, ao dares-me o teu amor de maravilha,
Deste-me o manto de oiro de raínha!
Tua irmã... teu amor... e tua amiga...
E também—tôda em flor—a tua filha,
Minha roseira brava que é só minha!...
[Pg 175]
O arabesco fantástico do fumo
Do meu cigarro traça o que disseste,
A azul, no ar, e o que me escreveste,
E tudo o que sonhaste e eu presumo.
Para a minha alma estática e sem rumo,
A lembrança de tudo o que me deste
Passa como o navio que perdeste,
No arabesco fantástico do fumo...
Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros,
Têm o brilho rutilante de astros,
Navios-fantasmas, perdem-se a distância!
Vão-me buscar, sem mastros e sem velas,
Noiva-menina, as doidas caravelas,
Ao ignoto País da minha infância...
Em atitudes e em ritmos fleugmáticos,
Erguendo as mãos em gestos recolhidos,
Todos brocados fúlgidos, hieráticos,
Em ti andam bailando os meus sentidos...
E os meus olhos serenos, enigmáticos.
Meninos que na estrada andam perdidos,
Dolorosos, tristíssimos, extáticos,
São letras de poemas nunca lidos...
As magnólias abertas dos meus dedos
São mistérios, são filtros, são enredos
Que pecados d'amor trazem de-rastos...
E a minha bôca, a rútila manhã,
Na via-láctea, lirica, pagã,
A rir desfolha as pétalas dos astros!...
[Pg 177]
Na penumbra do pórtico encantado
De Bruges, noutras eras, já vivi;
Vi os templos do Egipto com Loti;
Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.
No horizonte de bruma opalizado,
Frente ao Bósforo errei, pensando em ti!
O silêncio dos claustros conheci
Pelos poentes de nácar e brocado...
Mordi as rosas brancas de Ispahan
E o gôsto a cinza em tôdas era igual!
Sempre a charneca bárbara e deserta,
Triste, a florir numa ansiedade vã!
Sempre da vida—o mesmo estranho mal,
E o coração—a mesma chaga aberta!